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Pausa Sabática - Crónica com Sabor Amargo
Meio ano de Tu(r)bo d' Escape: reflexões sobre a vida de um projecto fortuito
No princípio foi o verbo. Ou seja, a palavra escrita, neste caso sob a forma de Carta Aberta dirigida a amigos aposentados, pensionistas e reformados, que intitulei «Iliteracia Ética: Ignorância e hipocrisia no confisco aos reformados». O forte retorno que me chegou no sentido de alargar a difusão desse documento e o gosto por me informar e discutir sobre temas de actualidade sociopolítica, acresceram, ao incentivo que por essa razão já me fora lançado no sentido de criar um Blog neste âmbito, a vontade de assumir o desafio. Assim nasceu, faz hoje seis meses e com o objectivo constante na respectiva Declaração de Princípios, o «Tu(r)bo d' Escape».
Embora já então muito crítico da concepção neoliberal e superlativamente austera como o Governo ia actuando face ao memorando assinado com a troika, e extremamente céptico em relação aos resultados a que uma tal política conduziria, estava longe de pensar que, no curto espaço de tempo que entretanto decorreu, a situação política e socioeconómica do nosso país se degradaria da forma tão incompetentemente provocada que a fez chegar ao estado de calamidade em que o país se encontra.
Também ao nível europeu, a realidade excedeu as minhas piores – e já de si muito baixas – expectativas de que existissem as indispensáveis condições, de vontade e de capacidade, para enfrentar com coesão e solidariedade a crise financeira “importada” em 2008 dos Estados Unidos da América.
De tudo isto resultou que, neste meio ano, o «Tu(r)bo d’ Escape ganhasse uma dinâmica bastante superior ao que inicialmente imaginara, somando já 70 posts, entre textos originais e transcrições comentadas (incluindo cinco interessantíssimas cartas do meu amigo Zé versando «O Chico da Terrugem - Reflexões políticas com sabor a Alentejo). Razão mais do que suficiente para recapitular o que de mais relevante foi escrito, reflectir sobre o que foi produzido e ponderar o que deverá ser o futuro próximo.
Estou convicto que os temas abordados - seguindo a linha traçada de “alertar, com o desejável rigor ético, para teorias e práticas que visem conduzir ao indesejável retrocesso civilizacional da sociedade portuguesa» e «tendo como génese os valores do socialismo democrático e da social-democracia europeia” -, reflectem o essencial do meu pensamento sobre o que está a ocorrer e sobre o que se perspectiva para o futuro do nosso país e da Europa. Resumindo:
- Denúncia do ataque despudorado e do iníquo jogo de falaciosa contraposição de interesses entre grupos sociais, incidindo em especial nos reformados, funcionários públicos e desempregados, com grave prejuízo dos visados, da coesão nacional e da solidariedade intergeracional.
- Rejeição da austeridade excessiva, injusta, descontrolada e desacompanhada de medidas que visem a sustentação da economia e do emprego, visivelmente personificada na acção de Passos Coelho e Vítor Gaspar e obscuramente influenciada por António Borges; atacar despudoradamente os mais velhos, condenar inexoravelmente a geração activa à precaridade e à desesperança, deixar os jovens sem expectativas de futuro, e a todos retirar os princípios fundadores do Estado Social, não é admissíel nem suportável.
- Crítica das práticas sociopolíticas consubstanciadas na estratégia de empobrecimento da classe média, de emigração dos mais jovens e qualificados, de desemprego a todos os níveis com predominância nos que procuram primeiro emprego, em suma, de instalação de uma espiral recessiva sem precedentes e sem limites e de uma inadmissível desprotecção social dos mais vulneráveis; impor medidas inconsequentes, à margem do memorando assinado com a troika e ao arrepio do programa de acção sufragado nas eleições legislativas de 2011, configura perca de legitimidade política do poder executivo e conivência presidencial com o irregular funcionamento das instituições.
- Alerta para os perigos de os portugueses serem governados seguindo o mito de que somos “povo de brandos costumes”, como resulta dos sinais de regresso aos estigmas da segregação social, do assistencialismo, e do autoritarismo.
- Recusa da culpabilização "calvinista" dos países do sul da Europa como "sementes do mal", e da aclamação "apologética" dos países do norte como "fontes da virtude"; as nossas responsabilidades de rigor orçamental, cumprimento das obrigações incorridas, e correcção dos erros cometidos, têm de ser assumidas com tempo e meios conformes com os princípios de coesão e solidariedade estatuídos nos tratados europeus", não com a brutalidade cega de uma qualquer "expiação punitiva".
- Ênfase para as responsabilidades da Alemanha na grave crise que se vive na Europa, e para o recrudescimento da histórica arrogância germânica, com realce para o facto de a prática política e discursiva dos governantes alemães estar a contribuir para episódios de grave instabilidade europeia que fazem despertar os fantasmas de nacionalismos exacerbados; não esquecendo que os algozes da nossa "purificação" virão a ser também vítimas do inapropriado uso, e abuso, da "lei do mais forte".
- Defesa intransigente de um adequado “bater o pé” às instituições - Comissão Europeia, BCE, FMI - que nos pretendem asfixiar ao sabor dos interesses dos "mercados" e do que entende a “patroa Merkel”; com evidência clara das incongruências entre o discurso que fazem os seus responsáveis (Durão Barroso, Mario Draghi, Christine Lagarde) e as práticas que impõem aos respectivos técnicos que nos "policiam" regularmente.
- Apelo para que não nos deixemos cair na vulgar tentação de sempre responsabilizar os outros – o “eles” - não actuando conformemente ao que a cada um e a todos – o “nós”- compete fazer; como também para que usemos sem reservas o direito à indignação sem que se entre no populismo demagógico de declarar a incompetência geral dos políticos esquecendo que há competentes e incompetentes em todas as profissões.
Chegado a este ponto e olhando para o futuro próximo, tudo indica que, com uma ou outra nuance, os principais temas se manterão nos próximos tempos e as posturas apenas irão variar por conveniências de circunstância. Estamos mal, vamos de mal a pior, e já deixámos de ter o futuro nas nossas mãos. Dependemos da Europa e da força que ainda nos reste para, acompanhados de outros países em situação idêntica, forçarmos a mudança de rumo na União Europeia, dizermos BASTA!
Por tudo isto, e para que não me repita no essencial dos conceitos que defendo, ou que até me possa exceder verbalmente face à insensata arrogância das pretensas elites socioeconómicas e dos misóginos responsáveis políticos que nos "comandam", decidi fazer uma “pausa sabática”. Não digo que o Tu(r)bo d’ Escape pára aqui, porque “nunca se pode dizer nunca”. Mas, por agora, e salvo algum apontamento muito especial que justifique interromper brevemente a atenção que vou dispensar a outros temas que “dormitam na gaveta", fico por aqui. E fico bem.
Fico com a consciência de quem deu a cara pelo que pensa. Fico com a expectativa de que um dia, quando os tempos forem outros e os factos de hoje passarem à história de amanhã, os meus filhos e as minhas netas não vivam o futuro negro que agora paira no horizonte e compreendam as razões deste… Tu(r)bo d’ Escape.
Rui Beja
Revisitar 2/5/1963... 50 anos depois!
Exemplo dos inomináveis constrangimentos que a minha geração teve de enfrentar. Memória viva do período longamente obscuro do "Estado Novo" da nossa história.
A história faz-se a partir de grandes acontecimentos. Mas estes não são mais do que o puzzle que resulta de muitos "pequenos nadas" que, em dado momento, viram o curso da própria história; para o bem ou para o mal. Quantas vezes estarão os principais protagonistas bem longe de adivinhar o efeito dos seus actos ou a gradiloquência das suas alocuções, e quantas outras o farão conscientes dos objectivos que pretendem alcançar?
Passados quase 90 anos sobre o golpe militar que, invocando a crise político-financeira que então se vivia, instituiu em 28 de Maio de 1926 a ditadura que duraria até 25 de Abril de 1974, sabe-se o que queria Salazar quando, por exemplo: i) - se demitiu 13 dias depois de ter sido empossado como ministro das Finanças em Junho de 1926, por considerar que não lhe davam as condições necessárias para o exercício do cargo; ii) - aceitou posteriormente retomar a pasta das Finanças, depois de lhe ser satisfeita a exigência de ter o poder de controlo sobre as despesas e as receitas de todos os ministérios; iii) - determinou a linha ditatorial em que iria perpetuar-se no poder ao afirmar «sei muito bem o que quero e para onde vou, mas não se me exija que chegue ao fim em poucos meses» (discurso de tomada de posse como ministro das Finanças em 27/4/1928); iV) - definiu o obscurantismo e promoção da imagem cultural e ideológica do Estado Novo subordinando-o ao axioma «politicamente só existe o que o público sabe que existe» (discurso em 26/10/1933); V) - traçou a desastrosa política externa do «orgulhosamente sós» (discurso em 18/5/1965).
No momento em que o país atravessa de novo uma profunda crise político-financeira, ao longo da qual tantas «atitudes irresponsáveis» têm ocorrido e inúmeros discursos «perigosamente autoritários» têm sido proferidos por quem não tem memória do que é viver em regime ditatorial, vale a pena lembrar que os fantasmas do obscurantissmo e da repressão se escondem por detrás das mais entusiásticas declarações de «defesa dos interesses nacionais», das melhores intenções de «salvaguardar a credibilidade externa do país», da insuportavelmente excessiva austeridade que conduz ao «vil empobrecimento dos portugueses», do ignomínio ataque à «solidariedade intergeracional», e da aviltante ofensa à «coesão social».
Por estas razões, considero oportuno transcrever as palavras que escrevi em À Janela dos Livros: Memória de 30 anos de Círculo de Leitores, e ilustrá-las com fotografias do grupo de estudantes envolvido no acontecimento que relato e do local onde nos mantiveram detidos na tarde de 2 de Maio de 1963.
...Foi neste contexto que, em 2 de Maio de 1963, teve lugar um dos mais rocambolescos e ridículos episódios de repressão policial em que acabei por me ver envolvido juntamente com outros finalistas do ICL, nomeadamente a Adélia, com quem já então namorava. Passou-se em Lisboa, na Rua Augusta, cerca das duas horas da tarde, quando visitávamos as instalações da Câmara de Compensação e, num relance, deparámos com um oficial de polícia[1] trajando à civil, de chibata na mão, que dizia ao professor[2] que nos acompanhava na visita de estudo: «não sei, não me interessa, estão todos presos». Uma ala de polícias armados fazia corredor até uma carrinha estacionada em frente ao edifício. O trânsito estava cortado; nos telhados dos prédios vizinhos, dezenas de polícias apontavam as armas na nossa direcção e a carrinha depressa se dirigiu, em sentido contrário ao do trânsito, para a esquadra do Terreiro do Paço. Depois de sermos identificados e de passarmos várias horas detidos, o tal capitão chamou-nos a uma sala para nos informar que tinha havido um engano: como o Sindicato dos Bancários se situava num piso por cima da Câmara de Compensação, a polícia considerara que se trataria de uma reunião conspirativa entre estudantes e sindicalistas e daí a montagem da operação policial que nos levou a passar uma tarde na esquadra!...
[1] Ao que então constou, tratar-se-ia de um capitão de apelido Maltês que teria comandado o cerco à Cantina Velha da Universidade, efectuado pouco tempo antes, e que levara à prisão de Caxias umas largas centenas de estudantes.
[2] António de Almeida, professor de Contabilidade Bancária
Rui Beja