Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]



Carta aberta ao ministro das Finanças alemão

Silva Peneda, presidente do Conselho Económico e Social, responde às palavras arrogantes, ofensivas e provocatoriamente insidiosas de Wolfgang Schauble, no jornal Público de 28 de Março de 2013

 

Escrevi aqui, em 12 de Novembro de 2012, em texto que intitulei Memória Curta - Os «alemães que perderam a II Guerra Mundial» e os «alemães Merkel»:

Nos dias de hoje, os meus amigos alemães de há quarenta anos dizem-me que têm muito receio do que se está a viver na Europa. Por uma questão maior: perder-se a paz. São «os alemães que perderam a II Guerra Mundial».

Merkel faz parte das novas gerações que começam a ser maioritárias no seu país. São os alemães que não se sentem comprometidos com o passado, que se assumem superdotados, que pensam exclusivamente no seu bem-estar. Querem desconhecer que a solidariedade de que a Alemanha já tanto beneficiou tem dois sentidos, parecem incapazes de perceber que os últimos, mas também os maiores perdedores do que se está a fazer na Europa, serão eles próprios. E não têm preocupações com o risco de uma questão maior: perder-se a paz. São «os alemães Merkel».

Independentemente da idade (nasceu em 1942) Wolfgang Schauble fala e actua como se não tivesse memória das guerras mundias provocadas pela Alemanha. Não sei, nem me interessa saber, se o faz por convicção ou simplesmente para captar as simpatias, e sobretudo os votos, da maioria dos alemães, dos «alemães Merkel». Sim, porque os «alemães Merkel» trazem com eles os genes dos seus antepassados (que até nem se aperceberam que tinham um líder nacional-fascista!) e também não se querem lembrar dos crimes cometidos por via do ancestral espírito de superioridade germânica. Estará o nacionalista «Deutschland Über Alles» a sobrepor-se, de novo, ao racionalismo inteligente dos alemães?



Silva Peneda põe o dedo na ferida de forma firme e inequívoca, conforme texto que em seguida transcrevo:

O Senhor Ministro afirmou que há países da União Europeia que têm inveja da Alemanha.  A primeira observação que quero fazer, Senhor Ministro, é que as relações entre Estados não se regem por sentimentos da natureza que referiu. As relações entre Estados pautam-se por interesses.

Queria dizer-lhe também, Senhor Ministro, que comparar a atitude de alguns Estados a miúdos que na escola têm inveja dos melhores alunos é, no mínimo, ofensivo para milhões de europeus que Têm feito sacrifícios brutais nos últimos anos, com redução muito significativa do seu poder de compra, que sofrem uma recessão económica que já conduziu ao encerramento de muitas empresas, a volumes de desemprego inaceitáveis e a uma perda de esperança no futuro.

E acrescentou o Senhor Ministro: "Os outros países sabem muito bem que assumimos as nossas responsabilidades...". Fiquei a saber que a nova forma de qualificar o conceito de poder é chamar-lhe responsabilidade!

E disse mais o Senhor Ministro: "Cada um tem de pôr o seu orçamento em ordem, cada um tem de ser economicamente competitivo". A este respeito gostaria de o informar que já tínhamos percebido, estamos a fazê-lo com muito sacrifício, sem tergiversar e segundo as regras que foram impostas.

 

Quando o ministro das Finanças do mais poderoso Estado da União Europeia faz afirmações deste jaez, passa a ser um dos responsáveis para que o projecto europeu esteja cada vez mais perto do fim.

Passo a explicar. O grande objectivo do projecto europeu foi garantir a paz na Europa e como escreveu um antigo e muito prestigiado deputado europeu, Francisco Lucas Pires, "...essa paz não foi conquistada pelas armas mas sim através de uma atitude de vontade e inteligência e não como um produto de uma simples necessidade ou automatismo...". A paz e a prosperidade na Europa só foram possíveis porque no desenvolvimento do projecto político de integração europeia teve-se em conta a grande diversidade de interesses, as diferentes culturas e tradições e os diferentes olhares sobre o mundo. Procurou-se sempre conjugar todas essas variedades, tons e diferenças dos Estados-membros numa matriz de valores comuns.

Esta declaração de Vossa Excelência põe tudo isto em causa, ao apontar o sentimento da inveja como o determinante nas relações entre Estados-membros da União Europeia. Quero dizer-lhe, Senhor Ministro, que o sentimento da inveja anda normalmente associado a uma cultura de confrontação e não tem nada a ver com uma outra cultura, a de cooperação.

Com esta declaração, Vossa Excelência quer de forma subtil remeter para outros Estados a responsabilidade pela confrontação que se anuncia. Essa atitude é revoltante, inaceitável e deve ser denunciada.

A declaração de Vossa Excelência, para além de revelar uma grande ironia, própria dos que se sentem superiores aos outros, não é de todo compatível com a cultura de compromisso que tem sido a matriz essencial da construção do sonho europeu dos últimos 60 anos.

Vossa Excelência, ao expressar-se da forma como o fez, identificando a inveja de outros Estados-membros perante o "sucesso" da Alemanha, está de forma objetiva a contribuir para desvalorizar e até aniquilar todos os progressos feitos na Europa com vista à conslidação da paz e da prosperidade, em liberdade e em solidariedade. Com esta declaração. Vossa Excelência mostra que o espírito europeu para si já não existe.

 

Eu sei que a unificação alemã veio alterar de forma muito profunda as relações de poder na União Europeia. Mas o que não deveria acontecer é que esse poder acrescido viesse pôr em causa o método comunitário assente na permanente busca de compromissos entre variados e diferentes interesses e que foi adotado com sucesso durante décadas. O caminho que ultimamente vem sendo seguido é o oposto, é errado e terá consequências dramáticas para toda a Europa. Basta ler a história não muito longínqua para o perceber.

Não será boa ideia que as alterações políticas e institucionais necessárias à Europa venham a ser feitas baseadas, quase exclusivamente, nos interesses da Alemanha. Isso seria a negação do espírito europeu. Da mesma forma, também não será do interesse europeu o desenvolvimento de sentimentos anti-Alemanha.

Tenho a percepção de que a distância entre estas duas visões está a aumentar de forma que parece ser cada vez mais rápida e, por isso, são necessários urgentes esforços, visíveis aos olhos da opinião pública, de que a União Europeia só poderá sobreviver se as modificações inadiáveis, especialmente na zona euro, possam garantir que nos próximos anos haverá convergência entre as economias dos diferentes Estados-membros.

 

As declarações de Vossa Excelência vão no sentido de cavar ainda mais aquele fosso e, por isso, como referiu recentemente Jean-Claude Juncker a uma revista do seu país, os fantasmas da guerra que pensávamos estar definitivamente enterrados, pelos vistos só estão adormecidos. Com esta declaração. Vossa Excelência parece querer despertá-los.

Rui Beja

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 00:21

 

Revista Visão, de 21 de Março de 2013

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 23:08

A grande falácia!

Contributos para desmistificar histórias mal contadas sobre a falta de sustentabilidade  dos sistemas de Segurança Social e Caixa Nacional de Aposentações

 

Volto a este tema quente, procurando manter a cabeça fria. O que não é tarefa fácil de cumprir face ao caudal de ataques soezes e chantagens inadmissíveis que o Governo e os seus infiltrados têm vindo a levar a cabo, na comunicação social e nas redes sociais, tendo em vista desinformar os cidadãos, dividir os portugueses, e condicionar o Tribunal Constitucional. Mas, por outro lado, são essas mesmas razões que me incentivam a reafirmar que mentem, consubstanciando a minha afirmação com factos e dados objectivos que sendo públicos se encontram dispersos, o que justifica que a respectiva divulgação seja tão exaustivamente replicada quanto possível, para que a mentira reiterada pelo Governo e pelos seus apaniguados não ganhe foros de verdade.

Não é de ânimo leve que apelido de "grande falácia" a narrativa de terror que tem acompanhado as iníquas decisões do Governo nesta matéria e as queixas lamechas de uns quantos "jovens turcos" que vêem nos reformados os grandes inimigos do seu futuro próximo e do futuro longíquo das gerações vindouras. Ou seja, a ameaça que, segundo eles entendem, os reformados constituem para os seus próprios filhos e netos, ou melhor dito, para aqueles a quem os reformados mais querem e por quem mais fazem o que podem e, quantas vezes, o que não podem. Vejamos porquê:

  1. Os reformados de hoje que cumpriram escrupulosamente as suas obrigações perante a Segurança Social e/ou a Caixa Geral de Aposentações, e que constituem a larga maioria de quantos recebem as suas pensões daquelas duas instituições, não podem ser confundidos com meia dúzia de privilegiados a quem o Estado atribuiu pensões de favor, nem com outra meia dúzia que se tenha auto-atribuído pensões de luxo ou encontrado formas ilícitas de ludribiar a legislação que, ao longo dos anos, foi regulamentando esta matéria; de qualquer forma, as entidades oficiais envolvidas no cálculo e atribuição de pensões têm, garanto que têm, meios ao seu dispor para "separar o trigo do joio" e, se houver razão para tal, penalizar selectivamente quem usufrua de pensões para as quais não tenha contribuído em conformidade com o espírito e a letra da lei, sem atingir de forma cega, injusta e ilegal todos os reformados e pensionistas, fazendo pagar os justos pelos pecadores.
  2. Os reformados de hoje pagaram em devido tempo as contribuições fixadas, as quais permitiram a obtenção continuada de elevados saldos positivos na Segurança Social, até 2010, apesar de terem sido utilizadas, até 1984, para pagamento de pensões atribuídas em regimes não contributivos; sendo ainda que de acordo com o «Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social», promulgado em 31 de Agosto de 2009 e entrado em vigor em 1 de Janeiro de 2011, as pensões são determinadas com base em cálculos actuariais que garantem a cobertura das respectivas despesas (artigo 51º).
  3. O Factor de Sustentabilidade criado pelo Decreto-Lei nº 187/2007, de 10 de Maio, (regime geral da Segurança Social) e pela Lei nº 52/2007, de 31 de Agosto, (adapta o regime da Caixa Geral de Aposentações ao regime geral da Segurança Social em matéria de aposentação e cálculo de pensões) veio alterar significativamente a fórmula de cálculo das pensões, dado que este Factor é fixado com base nos dados publicados anualmente pelo Instituto Nacional de Estatística que determinam a esperança média de vida (EMV) aos 65 anos verificada em 2006 e a EMV aos 65 anos verificada no ano anterior ao da reforma/aposentação.
  4. Segundo o Livro Branco da Segurança Social (publicado em 1998), entre 1985 e 1995 as transferências do Orçamento de Estado em dívida à Segurança Social ascendiam a 1.206,4 milhões de contos, o que corresponde actualmente a 11.721,5 milhões de euros de dívida ao regime contributivo.
  5. As dívidas não cobradas pela Segurança Social relativas ao período 2005-2011, parte das quais resultam de descontos feitos nos salários dos trabalhadores e não entregues pelas respectivas entidades patronais, atingiam 7.142 milhões de euros no final de 2011; note-se que, de acordo com dados do INE, do Centro Nacional de Pensões e do Orçamento do Estado, o regime contributivo da Segurança Social é penalizado pela evasão e fraude contributiva num valor estimado entre 3 e 6 mil milhões de euros por ano, sem que o Estado introduza esquemas eficazes de controlo e cobrança.
  6. Apesar das dívidas antes referidas e do custo relativo ao nível excepcional de desemprego provocado pelas medidas de austeridade decorrentes da actual política governamental (escudada no acordo estabelecido com a troika), o valor acumulado do Fundo de Estabilidade da Segurança Social era, em Outubro de 2012, segundo dados do Ministério da Solidariedade e Segurança Social, de 10.676 milhões de euros.
  7. A Caixa Geral de Aposentações tem sido descapitalizada pelo Estado, tanto pelo facto de os funcionários admitidos a partir de 2005 terem passado a contribuir para a Segurança Social, como por o próprio Estado não ter contribuído com a sua parte para capitalização do sistema; dados relativos exclusivamente ao período 1993-2003, apontam para uma sub-capitalização de 12.623 milhões de euros em  2012, correspondententes à contribuição não efectuada (23,75% dos salários) actualizada a uma taxa de rentabilidade de 4%.
  8. A transferência de Fundos de Pensões (ANA, CGD, PT, Marconi), efectuadas para resolver (artificialmente) excessos de défices orçamentais, está a criar um "buraco financeiro" na Caixa Geral de Aposentações, com as consequentes implicações  negativas no Orçamento do Estado: no final de 2011, as percas acumuladas dos activos transferidos estava avaliada em 1.324,5 milhões de euros.
  9. Sendo certo que o impacto demográfico, resultante do envelhecimento da população mas também do fraco índice de natalidade (a que os reformados são obviamente alheios), tem impacto negativo na adequada sustentabilidade, a prazo, dos actuais sistemas de pensões, não é menos verdade que segundo a Comissão Europeia (Statistical Appendix of European Economy- 19 de Outubro de 2012) a riqueza criada por empregado em Portugal, a preços de 2005, aumentou 5,37 vezes entre 1961 e 2010; ou seja, não se pode falar de demografia sem se falar de produtividade, o que implica a adopção de novos modelos de financiamento da Segurança Social.
  10. Todo este historial e o muito que ainda poderia ser acrescentado, demonstra que o Estado não só não tem cumprido  com as obrigações que assumiu por via do contrato social estabelecido com os contribuintes da Segurança Social e da Caixa Geral de Aposentações, como não tem sabido zelar pela gestão eficaz do valor contributivo que recebeu ao longo de décadas e, ainda mais grave, usou para outros fins parte das contribuições de que era tão-somente fiel depositário, configurando crime de abuso de confiança; escusado será dizer que as iníquas e confiscatórias penalizações que o Governo agora pretende fazer incidir exclusivamente sobre os reformados, servirão exclusivamente para tapar os "buracos financeiros" que ele próprio criou e, nunca, para assegurar a sustentabilidade futura dos sistemas de reforma.

 

Dito isto, deixo algumas interrogações para os governantes deste país e para quantos, com ingenuidade, ignorância ou má-fé, defendem o indefensável, ofendem despudoradamente os seus ancestrais, e põem em causa a solidariedade intergeracional.

Digam: qual a razão para que o plano "troikano" de ajustamento financeiro não contemple o ressarcimento das dívidas do Estado à Segurança Social e à Caixa Nacional de Pensões, nos mesmos termos que o faz em relação a outros credores nacionais e estrangeiros, nomeadamente os bancos, onde também se financiaram mas neste caso com o pagamento dos respectivos juros?

Esclareçam: por que motivo estarão os capitalistas financeiros tão interessados em "apanhar" para as suas Seguradoras e Fundos de Pensões os valores e responsabilidades actualmente geridos por entidades públicas sem fins lucarativos?

Questiono: o que esperam os futuros pensionistas beneficiar com essa transferência, sabendo-se que a crise financeira que "rebentou" nos Estados Unidos em 2008 se deve, largamente, à má gestão e consequente estado de falência técnica da generalidade dos Fundos de Pensões norte-americanos?

Pergunto: acreditam, um bocadinho que seja, que se o "assalto" que está a ser perpetrado contra os reformados de hoje merecer acolhimento pelo Tribunal Constitucional, não se escancara a porta para que um "assalto" ainda maior esteja reservado para os reformados do futuro?

 

Finalmente, coloco a dúvida que mais choca os reformados de hoje: não acreditam que as soluções já apontadas para reequilíbrio dos sistemas de pensões

 - inversão do insustentável declínio da economia do país e consequente decréscimo do desemprego; combate eficaz à evasão e fraude contributiva; cobrança coerciva das dívidas à Segurança Social; contribuição das empresas com base no Valor Acrescentado Líquido e não na Massa Salarial, aumentando assim a base global de cálculo e equilibrando o esforço entre empresas tecnológicas e empresas de mão-de-obra intensiva; estabelecimento progressivo de um plafond para contribuições e respectivos benefícios, deixando a gestão do valor remanescente ao critério do empregado -,

constituem, para além de outras hipóteses, formas viáveis de começar desde já a criar sustentabilidade para os reformados do futuro, ou o que querem mesmo é verem-se livres dos reformados de hoje para que não lhes pesem na vida e, se vier a calhar, ainda tirarem algum benefício do seu desaparecimento precoce?

Rui Beja

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 17:43

Da não-inscrição à violência

Oportuno alerta do filósofo José Gil, em artigo de opinião publicado na Visão de 14 de Março de 2013

 

Intelectual do maior prestígio nacional e internacional, o filósofo, ensaísta e pensador analisa criticamente a atitude do poder instalado face à manifestação de 2 de Março e fundamenta o receio de que "fazer como se nada tivesse acontecido" e, consequentemente, esquecer que "a não-inscrição forçada de uma acção que visa precisamente inscrever-se viola violentamente a democracia", origina "outros tipos de expressão e de protesto". Termina concluindo: "Da violência sofrida brota, em geral, violência - quem poderá garantir que destas forças soltas a violência nua não jorrará?". Vale a pena que os senhores que nos (des)governam pensem nestas palavas sábias e tomem consciência que sendo o país constituío por pessoas, o comportamento humano não se rege pelas regras dos números e das estatísticas.

 

Como se sabe, um dos meios que o Governo adotou para reduzir a zero as manifestações hostis é não lhes responder. Fazer como se nada tivesse acontecido é fazer não acontecer. Foi o que tentou o Governo com a manifestação de 2 de março. Mas é possível que desta vez, os seus cálculos lhe saiam errados.

 

Anular uma manifestação é impedir a sua inscrição no real. A não-inscrição forçada de uma ação que visa precisamente inscrever-se viola violentamente a democracia. Que significa «inscrever»? Produzir o real, abrindo possibilidades novas à existência. A não-inscrição da vida portuguesa atira os indivíduos para um limbo pantanoso em forma de duplo impasse. Como aqueles casais que se separam mas ficam ligados afetivamente, voltando esporadicamente a comportamentos de casados, depois de separados, e assim indefenidamente. Não conseguem inscrever a separação no real. Separação interminável porque não inscrita - o imaginário mistura-se com a realidade criando um caos pastoso, aonde, afinal, nada aconteceu. Será necessário um terceiro termo (um ato jurídico, por exemplo que decida da guarda dos filhos) para que a separação se inscreva desfazendo o limbo da não-separação imaginária.

 

Com a irrupção da troika e da austeridade brutal começou a aparecer o real no espírito dos portugueses quebrando o laço «simbiótico» povo-Governo. Mas surgiu da pior maneira. Primeiro, violentamente: dando ao real a figura do vazio, da anulação, da exclusão. Segundo, perversamente: ao mesmo tempo que, transformando os espíritos, os levava à exigência de se inscrever (ter um emprego, um salário justo, tomar iniciativas criar possíveis no presente e no futuro), retirava-lhes as condições dessa inscrição (empobrecendo-os, humilhando-os, roubando-lhes o trabalho, o espaço, o tempo e as forças). Uma mudança radical parece começar assim na cultura da não-inscrição, forçando o português a abortar o seu próprio processo de transformação. Um outro duplo impasse se está edificando sobre as ruínas do antigo.

 

COMPREENDE-SE ASSIM A NATUREZA da manifestação de 2 de março. Os portugueses estão num processo de mudança de mentalidade. O limbo está a desaparecer e a violência da situação que lhes impõem inaugura talvez um novo modo de expressão das suas forças. Processo que vai do queixume, do masoquismo e da suave paranoia dos seus gozos (não-inscrição) - voltando contra si mesmo a violência inconsciente -, à exteriorização, ação, criação que tenta abrir caminho no real (inscrição). Fases que marcam uma relação específica à violência: 1.ª) fuga à violência - autoflagelação, interiorização de violência; 2.ª) descoberta da violência real da vida nula, da necessidade de inscrição e da sua impossibilidade brutal; 3.ª) exteriorização das forças - uma outra política ou a violência real contra o real violento?

 

EM 2 DE MARÇO OS PORTUGUESES mostraram situar-se na segunda fase: desorientação, confusão, sideração - abandonaram o queixume, mas não sabem ainda como protestar. Daí o silêncio. E a ausência de apatia (porque vieram). Daí a coexistência de múltiplos grupos heterogéneos, de indivíduos solitários e mudos. Todos se aceitavam na sua igualdade nua. Desinvestiram em símbolos políticos, palavras de ordem mais ou menos codificadas. Bastava estarem lá, afirmando-se pela sua presença contra quem os anula e quer fazer desaparecer. Mudez contida que esconde forças desinvestidas, soltas, não codificadas e não canalizadas por ideologias e partidos. Da violência sofrida brota, em geral, violência - quem poderá garantir que destas forças soltas a violência nua não jorrará?

Rui Beja

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 18:28

A geração que nasceu na ditadura e na pobreza é agora vista como "privilegiada"

Em crónica objectiva, Ana Sá Lopes denuncia o vil e despropositado ataque do governo aos reformados,

 no «Jornal I» de 11 de Março de 2013

 

Sem contemplações, a subdirectora do «Jornal I» põe o dedo na ferida de uma das mais demagógicas, populistas e insanes campanhas de desinformação e propaganda, levada a cabo pelo (des)governo deste país com a colaboração activa de umas quantas, felizmente poucas, mentes perversas às quais alguém, algum dia, deu palco e procurou fazer acreditar tratarem-se de credíveis comentadores políticos e fazedores de opinião:

 

É provável que o Tribunal Constitucional decrete a inconstitucionalidade da sobretaxa de 3,5% aos reformados, tratados por este governo como cidadãos de segunda – provavelmente fazendo parte desse contingente de “instalados” que trava a ascensão dos jovens de que recentemente falava Miguel Relvas. Se é impossível negar a existência da inversão da pirâmide demográfica (e uma reforma da Segurança Social deveria sempre discutir a existência de tectos máximos, rejeitando reclamações patéticas do estilo do movimentos dos banqueiros reformados e etc.), obrigar um pensionista com mais de 1350 euros mensais a pagar a crise com uma sobretaxa é um atentado social e institui, de facto, uma desigualdade geracional. Tratar os reformados como cidadãos de segunda é tentar fazer recair sobre uma geração que nasceu numa ditadura, que não teve qualquer acesso ao Estado social até à idade adulta, que em alguns casos viveu o racionamento da Segunda Guerra, penou na guerra colonial e teve os seus direitos civis amputados até ao 25 de Abril de 1974, uma “culpa” de se ter transformado, na meia--idade, sabe Deus como, numa geração de “privilegiados”.

 

Não dispondo de qualquer hipótese de criar emprego – é a própria receita recessiva da troika e as políticas europeias que o impedem – o governo entretém-se na propaganda infeliz de colocar as gerações umas contra as outras, como se a situação fosse definível pela existência de “culpados” e “vítimas”. A utilização política do gap geracional é tanto mais obscena quanto a geração dos reformados fez o que lhe foi possível para entregar às novas gerações um país muito melhor do que aquele que existia quando começou a trabalhar e a pagar impostos. Se o Tribunal Constitucional declarar impossível à luz da Constituição portuguesa a divisão entre velhos e novos presta um bom serviço à coesão nacional.

 

Afinal, não foi a esmagadora maioria dos agora atingidos que criou os regimes excepcionais de reformados de cargos públicos – que na sua origem foram criados para evitar que um titular de cargo público passasse à situação de desemprego quando o mandato expirasse, mas serviu de pasto para um sistema insustentável moral e financeiramente. A participação maciça de pessoas mais velhas na manifestação “Que se lixe a troika” é um sintoma expressivo de que o combate ao governo tem nos reformados um dos seus principais suportes. Afinal, o governo também se encarrega de os combater

 Rui Beja

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 12:02

Há sempre o passado

Predro Marques Lopes, cronista político que "dá a cara" pelo PSD nos programas «Eixo do Mal» (SIC Notícias) e «Bloco Central» (TSF), atesta fracasso de Passos Coelho em artigo de opinião publicado no Diário de Notícias de 10 de Março de 2013

  

Passos Coelho, que no início do seu mandato jurou a pés juntos nunca ir desculpar-se com o passado, passou o debate parlamentar da última quarta-feira a fazê-lo.

Nada de muito surpreendente, não sobra mais nada que se assemelhe, sequer vagamente, a discurso político. O slogan do "vamos atingir os 4,5% de défice custe o que custar" morreu e a bravata do "nem mais tempo nem mais dinheiro" soçobrou à realidade. Já não há metas nem luzes ao fundo do túnel para apontar. Não há reforma digna desse nome, não há dado que não grite o falhanço absoluto do Governo e do plano europeu, que era, como foi repetido, o seu próprio. Nada bateu certo, tudo ficou muito pior.

Com o desaparecimento das narrativas o discurso, que já não era propriamente fluente nem bem estruturado, tornou-se errático, sem sentido. Atiram-se simplesmente uns assuntos para o ar.

Invocam-se os cortes de 4000 milhões de euros que o Estado francês vai fazer para justificar os cortes do mesmo valor que o Governo português tenciona realizar. Uma comparação destas, aliás, só pode ter sido feita por má-fé ou por pura ignorância. Só alguém muito distraído pode acreditar que cortes deste valor em França e em Portugal têm os mesmos efeitos. Alguém que ignore que cortar 4000 milhões de euros no Estado social francês e português não é a mesma coisa. Alguém que não conheça a extensão do Estado Social português e francês. Alguém que não saiba a diferença entre os salários, pensões e prestações sociais em Portugal e em França. De facto, é difícil acreditar que um primeiro-ministro desconhece estas realidades.

Faz-se um discurso sobre o valor do salário mínimo que apenas nos recorda o distanciamento do primeiro-ministro face à realidade das empresas portuguesas e o desconhecimento sobre as razões dos números do desemprego. Disse Passos Coelho que, apesar de não o tencionar baixar, acreditava que o desemprego baixaria se existisse uma redução do salário mínimo.

Não há empresário que possa dizer com verdade ao primeiro-ministro que a sua quinquagésima fonte de preocupação é o valor do salário mínimo. Falarão do custo de electricidade, água, gás; falarão da incomportável carga fiscal; falarão da burocracia, dos licenciamentos e afins; mas sobretudo falarão da impossibilidade de se financiarem e da falta de clientes. Em termos muito simples: não havendo crédito para as empresas funcionarem nem clientes para se vender os produtos não há postos de trabalho. Não existirá um único empresário digno desse nome que lhe diga que se o salário mínimo, com o actual valor, diminuir contratará mais trabalhadores. Mais, existirão seguramente muitos empresários a pedir para que se aumente o salário mínimo como forma de aumentar a procura interna, que, convém recordar, é importante tanto para as empresas que trabalham para o mercado interno como para as que exportam.

Pode haver uns senhores, que de empresários só terão o nome no cartão de visita, que digam que uma diminuição do salário mínimo lhes permitirá manter as suas empresas no mercado. É muito simples: uma empresa que baseie o seu modelo de negócio em baixos salários, no limite precise que estes sejam ainda mais baixos do que 485 euros, já está morta. Como diria o Presidente da Republica, citando talvez La Palisse, "não é com baixos salários que se garante a competitividade das empresas". Existirão sempre Chinas. Um país como Portugal se quer assinar a sua sentença de morte económica basta-lhe apostar num modelo baseado em baixos salários, em baixas qualificações, em produtos com pouco valor acrescentado. O empobrecimento é apenas um dos passos para essa morte.

Já não há discurso. Sobram estes pedaços de coisa nenhuma, desligados de qualquer estratégia ou rumo.

Resta o passado. Vamos nos próximos tempos ouvir falar muito dos erros do passado, e, como bem sabemos, é um tema sem fim. Foram muitos. No passado recente, no menos recente, no ainda menos recente, no início do processo democrático, no Estado Novo, e por aí fora.

Mas é, no fundo, a admissão da derrota. Quando se desiste de lutar, quando não se é capaz de encontrar soluções, há sempre o passado para culpar. O passado, em política, é o último refúgio do fracasso.

 

Devo dizer que não aprecio especialmente o estilo auto-convencido e truculento de Pedro Lopes Marques. Não gostava da sua postura quando o PSD estava na oposição e não entendo curial que, agora, aceite "dar a cara" pelo "seu partido" quando está em completo desacordo com a respectiva direcção e a consequente prática política ultraneoliberal e... incompetente. Reconheço, no entanto, a sua perspicácia, o seu nível de conhecimentos, o seu grau de informação, e a sua capacidade de exposição. Por essas razões e porque este seu artigo coincide, no essencial, com a minha visão do que se está dramaticamente a passar no nosso país, entendo útil fazer a presente transcrição e subscrever o seu teor.

Rui Beja

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 16:43

O 'conselheiro' Borges

Oportuníssimo artigo de João Marcelino, publicado no Diário de Notícias de 9 de Março de 2013

 

1. Tenho por certo que António Borges, nesta fase da sua vida, está muito pouco interessado em fazer concessões em relação a tudo aquilo em que acredita, e a tudo aquilo que julga saber.

Isso tem sido evidente nos últimos meses.

Cada vez que António Borges dá uma entrevista, e desdobra-se como nunca nessa cruzada, o que diz produz efeito.

Em junho defendeu que os salários dos portugueses deviam baixar. Obrigou o primeiro-ministro a vir esclarecer que o Governo não tinha nenhum plano para descer nominalmente os salários.

Em agosto, numa incursão sobre a RTP, lançou a ideia de concessionar a estação a privados que tinham, dizia ele, melhores condições para gerir a empresa - e despedir quem houvesse a despedir a seguir. Mesmo quando, já no início deste ano, Miguel Relvas anunciou que a privatização estava cancelada e se iria seguir a restruturação da RTP mantendo-a na órbita do Estado, o conselheiro Borges entendeu que não seria bem assim. E disse-o.

Em setembro, na mais bruta das polémicas, tinha decidido chamar ignorantes aos empresários que rejeitaram as alterações à taxa social única, que Pedro Passos Coelho, pressionado pelo País, foi obrigado a meter na gaveta.

2. Agora, retomando o tema que lhe é tão caro da baixa de salários, António Borges acha que até o ordenado mínimo (485 no Continente e um pouco mais nos Açores e na Madeira) deveria diminuir, como aconteceu noutros países, como a Irlanda. Que o salário mínimo português seja um terço do irlandês será, com certeza, um pormenor; e que os patrões portugueses, numa perspetiva mais inteligente de reanimação do mercado interno, estejam até disponíveis para negociar esse salário mínimo nacional, deve ser - é - absolutamente irrelevante para o "conselheiro" Borges.

Pelo meio disto, a avença de 300 mil euros que recebe para o grupo de trabalho que lidera dar conselhos ao Governo sobre as privatizações não o impediu de assumir funções num grupo privado, a Jerónimo Martins.

3. É um mistério que o Governo continue a precisar dos doutos conselhos do antigo vice-governador do Banco de Portugal e alto funcionário da Goldman Sachs.

Por um lado, cada vez que o homem fala - e já se percebeu que não se sente limitado neste campo da comunicação - o Governo abana. Leva com os protestos e críticas de empresários, trabalhadores e partidos da oposição, quando não mesmo com as de relevantes militantes dos próprios PSD e CDS.

A irresistível lógica teórica defendida por Borges de que baixos salários são um passo para promover o emprego no futuro seria, aliás, sempre um excelente argumento para Pedro Passos Coelho fazer aquilo que há muito se impõe: despedi-lo com justa causa, retirar ao "conselheiro" a possibilidade de continuar a massacrar os seus compatriotas com a dureza de quem parece que já nada espera da vida.

Há momentos em que é preciso dizer basta aos dislates, mesmo que travestidos de alguma lógica académica ultraliberal.

Não há nenhum motivo de natureza racional que, tantos disparates depois, aconselhe a manter este homem na órbita do Governo - pago, e bem pago, com o dinheiro de todos os contribuintes. Se há limites para a arrogância intelectual paga pelo Estado, António Borges ultrapassou-os todos.

Se todos os portugueses trabalhassem de borla haveria pleno emprego e todas as empresas do mundo quereriam estabelecer-se no nosso país - será que António Borges já pensou nisto? É uma bela ideia, não é?

 

Perante estas evidências, só resta uma pergunta: por que não o calam? A quem interessa, e por que razões, dar palco e dar voz aos dislates de António Borges e... ainda lhe pagarem para o fazer? Se houvesse neste país um primeiro-ministro a sério, seria a pessoa indicada para "cortar o mal pela raíz".

Rui Beja

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 19:53

Manuela Ferreira Leite e Mota Amaral

Destacados militantes do partido que lidera o Governo opinam, no Expresso de 2 de Março de 2013

 

Contra argumentos não há factos

Manuela Ferreira Leite

  Há precisamente um ano, em 3 de março de 2012, nesta mesma coluna, escrevi um texto que, na sua essência, hoje poderia reproduzir porque as alterações a introduzir para o tornar atual seriam de tom e não de conteúdo.

  Há um ano, referia-me à "terceira" avaliação da troika, que hoje teria de ser corrigida para "sétima", mas as preocupações e as dúvidas quanto às consequências das políticas seguidas ganharam uma dimensão dramática.

  Há uma ano, achei que a posição de responsáveis da troika, nomeadamente do FMI, lançava alguma esperança sobre o futuro porque parecia ter "muito maior consistência a ideia de que sem crescimento económico não seria possível alcançar a necesssária consolidação orçamental, num espaço de tempo como o que normalmente é exigido aos países endividados".

  Passou um ano e nada de substancial se alterou na política que nos foi imposta e, por isso, a esperança, hoje, transformou-se em necessidade.

  Há um ano, lastimava que "infelizmente parece serem os números do desemprego que estão a fazer despertar os responsáveis europeus para encarar com urgência a questão do crescimento".

  Hoje, os números impensáveis que esse drama atingiu, não só em Portugal em outros países do Sul da Europa, batem com toda a força à porta dos decisores que parece terem finalmente despertado para o desastre das terapias prescritas pelas troikas nos diversos países em que intervieram.

  Há um ano, esperava-se muito da "redução estrutural da despesa resultante da renegocição de contratos com margens de lucro previamente asseguradas, bem com as relacionadas com as energias renováveis". Além disso, considerava-se inadiável "avaliar a possibilidade e o caminho da renegociação das parcerias público-privadas".

  Ninguém duvidava da complexidade destes dossiês e todos pressentiam que a redução da despesa com origem nestas alterações teria efeitos recessivos na economia muitíssimo menores do que os provocados pela redução dos salários e pensões.

  Hoje, pouco se fala do assunto, mas ele mantém-se atual.

  Há um ano, o título que dei ao texto - "Correção da estratégia?" - traduzia a esperança de que a troika poderia alterar a política que tinha desenvolvido para o país.

  Sabe-se que nada disto ocorreu e, nessa medida, hoje, pode ser feita a mesma pergunta com redobrada premência quando está em curso a sétima avaliação.

  Sempre defendi que o acerto ou desacerto de uma política se mede e avalia pelos resultados alcançados e não pela fama das teorias económicas, quaisquer que elas sejam, que alicerçam as medidas adotadas e desprezam as consequências que delas resultam.

  Há um ano, esta última posição fazia o seu caminho, numa cegueira e teimosia cujas consequências hoje são indesfarçáveis.

  Foi a época do princípio "contra argumentos não há factos".

  Hoje os resultados económicos e o das eleições em Itália não deixam dúvidas sobre a perceção que os cidadãos têm das políticas que lhes têm imposto.

Esperemos ter entrado na fase de "contra factos não há argumentos".

 

Mudança de rumo

João Bosco Mota Amaral

  A anunciada inflexão da política do Governo, encoberta com as habituais juras de que tudo se mantém igual, é motivo de moderada esperança para a comunidade nacional. Foi, por fim, oficialmente reconhecida a necessidade de mais tempo e mais dinheiro para superar a crise em que Portugal tem vindo a afundar-se. E mesmo assim não vai ser fácil sair dela, tanto se agravaram situações como o desemprego e a própria dívida pública, atingindo já números assustadores.

 Sempre me pareceu imprudente decretar, num quadro recessivo prolongado, a incapacidade do Estado para manter os serviços públicos essenciais, com destaque para a saúde e a educação, mas incluindo a segurança social e até a defesa e a segurança pública. Com a economia sufocando e o desemprego a disparar, as receitas do Estado tombam. Se se conseguir impulsionar o crescimento haverá mais gente a trabalhar e a pagar impostos, mais consumo e investimento e a receita pública aumentará, melhorando as condições de sustentabilidade das despesas sociais e outras. Se porventura no imediato é preciso fazer sacrifícios - e eles estão a ser feitos, com heróica tenacidade pelo povo português mais avisado é remeter para dias melhores as modificações da estrutura da despesa pública e das próprias funções do Estado.

  Portugal enfrenta um sério problema de competitividade da economia nacional. Mas a única via de solução não é decerto baixar os salários, como se está fazendo, porque haverá sempre países onde são inferiores. Na Finlândia, que é apenas o terceiro país mais competitivo do mundo, o salário nínimo é cinco vezes superior ao nosso; mas o que aqui não anda e amarra a iniciativa privada e inferniza a vida dos cidadãos, lá funciona.

  Sendo o nosso país um dos membros fundadores da zona euro, os nossos problemas revestem uma óbvia dimensão europeia. Requer-se por isso um discurso político renovado com os nossos parceiros, que ponha em evidência os problemas aqui sentidos e propugne pelas respostas solidárias que reclamam. Aliás, não faltam, infelizmente, situações parecidas com as nossas, algumas ainda disfarçadas, de modo que se afigura viável gerir em conjunto o esforço de inflexão da política europeia de austeridade. Se nos limitarmos a repetir que não precisamos de mais ajuda, ninguém obviamentente irá tomar a iniciativa de nos ajudar. Arvorar suficiência permite ficar bem na fotografia; mas a realidade subjacente é que não se recomenda e está a desalinhar das previsões governamentais.

  O momento é difícil e exige, dos responsáveis do Estado, cabeça fria e decisões prudentes. Nas hodiernas democracias participativas e de opinião, fortemente mediatizadas, a legitimidade eleitoral dos governos está constantemente desafiada a confrontar-se com a eficácia das políticas adotadas e a satisfação e confiança dos cidadãos. Não se deve, por isso, desvalorizar os sinais de rejeição e desrespeito que por aí vão lavrando como fogo em pradaia. Fortalecer a honra e a credibilidade das instituições democráticas - é preciso!

 

Desafortunadamente, não parece crível que estas palavras avisadas sejam tomadas em conta por quem está a (des)governar o país e, muito menos, por uma troika que  se limita a obedecer cegamente aos interesses da Alemanha, de mais uns quantos "falcões" do Norte da Europa e, clarissimamente, do apátrida  e ganancioso capitalismo financeiro.

O debate quinzenal hoje ocorrido na Assembleia da República evidenciou que os sinais de inflexão não terão consumação prática adequada e suficiente. As notícias vindas da troika prenunciam "mais do mesmo" em termos de austeridade, e um "pequenito doce" nos prazos de ajustamento do déficit e de pagamento da dívida que em nada resolverão o "amargo de boca" que nos vai alastrando.

Para "ajudar à festa", ficámos também hoje a saber que o Presidente da República, depois de semanas de silêncio, nada tem a acrescentar ao que disse em Janeiro sobre o mau caminho que estamos a tomar; a não ser que trabalha 10 horas por dia de segunda a sexta e às vezes também trabalha ao fim-de-semana.

Tudo razões para perspectivarmos com muita apreensão as cenas dos próximos capítulos.

Rui Beja

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 23:45

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 23:00

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 00:00

O direito à indignação

José Carlos de Vasconcelos defende o direito à manifestação popular legítima e sem violência, de protesto perante a irracionalidade das fracassadas medidas de austeridade impostas pela troika e zelosamente cumpridas ou até ultrapassadas pelo Governo, na Visão de 28 de Fevereiro de 2013

 

Homem de cultura, poeta, jornalista, jurista, e director do Jornal de Letras, José Carlos de Vasconcelos acompanha e participa na actividade política desde os tempos em que foi dirigente da Associação Académica de Coimbra. Intransigente defensor do regime democrático, foi advogado de personalidades julgadas pelo Tribunal Plenário durante o período do Estado Novo e, depois da instauração da democracia, deputado pelo PRD - Partido Renovador Democrático. Como jornalista e analista político, mantém a linha de pensamento que o notabilizou na defesa das liberdades, direitos e garantias que caracterizam os regimes democráticos.

A crónica que aqui transcrevo é bem representativa do pensamento do seu autor, por quem nutro a muita consideração e estima consolidadas numa forte relação profissional e pessoal vivida, ao longo dos anos, no mundo dos livros.

E obviamente porque partilho a defesa do inalianável direito à indignação e à sua expressão pública sem violência e com civismo.

 

Quem avalia a troika?, apetece perguntar agora que os troikanos voltaram para a avaliação que se diz ser a mais importante. Até agora, eles sempre deixaram elogios aos indígenas, como tinha de ser, porque estes sempre cumpriram religiosamente as suas ordens. Ou mesmo as ultrapassaram, na ortodoxia das receitas, nos excessos da «austeridade», na irracional imposição de medidas tão tremendamente nocivas como injustas, no desprezo pelas críticas e pelos alertas para a situação a que com elas seríamos conduzidos e na qual de facto nos encontramos.

  É evidente que este Governo tinha uma missão muito difícil e poderia não atingir os objectivos desejados. Mas não se trata apenas de não os atingir,de falhar todas as previsões, de errar e errar com arrogância - trata-se, sim, de estarmos cada vez pior e mais longe deles. Enfim, o Governo foi forçado a reconhecer uma pequena parte do seu monumental falhanço e diz que vai pedir mais um ano de prazo para os novos cortes. Não chega: tem de haver uma renegociação da dívida, que passa por prazos maiores mas também por juros menores; e tem de haver novas políticas. Ainda há dias Paul Krugman uma vez mais condenava a irracionalidade destas políticas de austeridade (quanto mais severa pior a recessão...), que fazem os seus defensores parecerem cada vez mais «insolentes e delirantes».

  A avaliação do Goveno pela troika não significa nada, pois não passa de uma espécie de juízo em causa própria. E a avaliação da troika, como a do Governo, só pode ser feita através dos resultados, que são muito maus, e pelos portugueses. Em eleições, quando as houver; e antes delas, através das outras formas que a democracia propicia, entre as quais as manifestações de rua. Como foi a de 15 de Setembro de 2012, um autêntico «marco» a assinalar o pensar e o sentir do País, nesta emergência nacional, e como será a do próximo sábado.

 

ENTRETANTO, O POVO TEM direito àindignação - e a exprimi-la. Sem violência, com civismo. O direito à indignação e o direito à esperança são dois direitos fundamentais. Direitos que em certas circunstâncias a cidadania transforma também em deveres. Assim, creio ser legítimo, natural, que a indignação se manifeste quando está presente um membro do Governo, sobretudo se for dos mais contestados. Cantar, então, a Grândola, representa uma bela forma do exercício simultâneo do direito à indignação, pelo protesto que cantá-la nessas condições significa, e do direito à esperança, pelo símbolo virado para o futuro que a cantiga do José Afonso continua a ser.

  Constituirá, no entanto, um atentado à liberdade de expresão fazê-lo em termos de levar um membro do Governo a ser ou a sentir-se impedido de usar da palavra numa intervenção pública? A questão pôs-se a propósito de dois episódios com Miguel Relvas e não fujo a ela: a minha resposta é, quanto a esses episódios, negativa, por várias razões que aqui não cabem. Embora julgue ser mais curial que, dado o recado e transmitida a mensagem que com o cantar a Grândola se visa, não prolongar a contestação. Mais do que considerar que tais manifestações limitam a liberdade de expresão dos governantes - o que chega a ser um pouco caricato, dado estarem eles sempre a «exprimir-se» e em geral antes de falarem já se saber até o que vão dizer -, deve-se considerá-las exercício da liberdade de expressão por parte de quem só nessas ocasiões, e só para protestar, tem acesso aos media.

 

IMPÕE-SE, PORÉM, DISTINGUIR situações, intervenções e até membros do Governo - a generalidade deles da troika interna - Passos, Gaspar e Relvas. Em particular este, cuja continuação no Executivo revela, da parte do primeiro-ministro e da sua, pelos motivos que se conhecem, um lamentável desrespeito pela vontade dos portugueses, se não constitui mesmo uma afronta. Por isso, porque a sua presença no Governo é percecionada por muitos como uma espécie de «provocação», e como após uma fase em que teve a sensatez de não aparecer agora se exibe em vários palcos, os protestos são e decerto serão cada vez mais veementes - com a compreensão, ou mesmo aplauso, julgo eu, da imensa maioria dos portugueses...

Rui Beja

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 18:05

A deriva populista

José Manuel Pureza alerta para a perigosa inconsequência do voto de protesto em movimentos populistas de vocação contestatária e sem programas sustentados e credíveis de exercício responsável do poder democrático, no Diário de Notícias de 1 de Março de 2013

 

 Dizia há dias Ricardo Araújo Pereira, numa interessantíssima conversa com Pedro Mexia no Encontro Nacional da Associação de Professores de Filosofia, que não é a votação num palhaço que mostra a crise da democracia, porque há palhaços com excelentes ideias e engenheiros ou advogados sem ideia nenhuma. O problema não é a profissão, é o programa. Ou a falta dele.

As eleições em Itália mostraram à saciedade como Ricardo Araújo Pereira tem razão. Mal ou bem. A esmagadora maioria dos italianos viu nos boletins de voto uma escolha simples: ou a política europeia de austeridade, em versão mais branda ou mais bruta, ou a humilhação do sistema político fazendo dele bode expiatório de uma sociedade indignada.

 Não vale a pena perder um minuto que seja a tentar perceber se essa humilhação era justa ou não. Porque não é de justiça que se trata, mas sim de juízo de utilidade por parte dos eleitores. Um centro-esquerda de gelatina que de esquerda tem o nome e nada mais, uma direita de um citizen kane pimba atolado em binga-bungas de escândalos e um consultor da Goldman Sachs, querido de Berlim e de Bruxelas e feitor interno da austeridade punitiva ditada por quem manda na quinta europeia, não deram aos italianos o ensejo de dizerem "não". Disseram-no através do populismo.

Convém aqui dizer que um voto de protesto é tão vital para a democracia como um voto de programa. Isto dito, o protesto expresso nos 25% de Beppe Grillo é um recado forte com um fundamento fraco. Recado forte porque põe a ridículo toda a elite política do sistema. Mas com um fundamento fraco porque parte da convicção de que o problema é a elite política quando o problema é o sistema. Não há aqui engano possível: enquanto o sistema for o da política de austeridade da troika, as elites políticas suas intérpretes serão sempre medíocres. Porque a gelatina, o bunga-bunga ou a tecnocracia não são senão três rostos da mesma cultura política de pequenez, de subserviência e de feitoria colonial. Por isso mesmo, crer que a renovação da elite política é o foco prioritário da mudança necessária é crer numa ilusão. Mudar políticos é sem dúvida muito importante. Mas mudar de políticas é decisivo.

 

 O embuste do populismo é exactamente esse: criar a convicção de que estamos como estamos porque "os políticos" estão acomodados nas suas prebendas e que um arejamento do método de escolha e de legitimação e um consequente refrescamento da "classe política" trará horizontes completamente novos. Espero sinceramente que os italianos não caiam na triste tentação de aceitar esta possibilidade, mas forme Grillo governo em Itália e veremos quantos dias demora a ser classificado como "igual aos outros".

 A falsa alternativa entre os campeões da austeridade e os populismos descabelados é a herança mais perigosa que a ditadura do combate ao défice legará à Europa. E não nos enganemos: ser palhaço não é símbolo de populismo como ser engenheiro ou advogado não é símbolo de responsabilidade. Ricardo Araújo Pereira tem toda a razão: o que degrada a democracia não é a profissão dos eleitos nem a encenação que fazem para disseminarem as suas ideias; o que degrada a democracia são as ideias que defendem. E sobretudo a falta de ideias.


Independentemente da orientação político-partidária da crónica de José Manuel Pureza, sublinho e subscrevo o essencial do alerta que contempla: os perigos do populismo fácil e democraticamente inconsequente. E, acrescento eu, a perfídia de a uma deriva populista suceder uma qualquer deriva ditatorial sempre ávida pela conquista do poder.

Rui Beja

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 11:05


Mais sobre mim

foto do autor


calendário

Março 2013

D S T Q Q S S
12
3456789
10111213141516
17181920212223
24252627282930
31

Declaração de Princípios

José Cardoso Pires escreveu, em adenda de Outubro de 1979 ao seu «Dinossauro Excelentíssimo»: "Mas há desmemória e mentira a larvar por entre nós e forças interessadas em desdizer a terrível experiência do passado, transformando-a numa calúnia ou em algo já obscuro e improvável. É por isso e só por isso que retomei o Dinossauro Excelentíssimo e o registo como uma descrição incómoda de qualquer coisa que oxalá se nos vá tornando cada vez mais fabular e delirante." Desafortunadamente, a premunição e os receios de José Cardoso Pires confirmam-se a cada dia que passa. Tendo como génese os valores do socialismo democrático e da social democracia europeia, este Blog tem como objectivo, sem pretensão de ser exaustivo, alertar, com o desejável rigor ético, para teorias e práticas que visem conduzir ao indesejável retrocesso civilizacional da sociedade portuguesa.

Os Meus Livros

2012-05-09 A Edição em Portugal (1970-2010) A Edição em Portugal (1970-2010): Percursos e Perspectivas (APEL - Lisboa, 2012). À Janela dos Livros capa À Janela do Livros: Memória de 30 Anos de Círculo de Leitores (Círculo de Leitores/Temas e Debates - Lisboa, 2011) Risk Management capa do livro Risk Management: Gestão, Relato e Auditoria dos Riscos do Negócio (Áreas Editora - Lisboa, 2004)

Não ao Acordo Ortográfico

APRe! - logotipo


subscrever feeds