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O infalível reino da Gasparlândia
Nicolau Santos denuncia sem rodeios o desastroso desempenho técnico-político do ministro das Finanças, no Expresso de 23 de Fevereiro de 2013
Um excelente texto do credenciado jornalista, economista de formação, que com a sua reconhecida competência, frontalidade, e bem doseada ironia, ilustra a total falência do modelo ultraneoliberal preconizado e seguido por Vítor Gaspar, com o apoio cego de Passos Coelho, sem o mínimo rebuço em utilizar a mentira, persistir no erro, e desprezar os lesados pela cartilha técnico-política de que não abdica.
E ao vigésimo dia do segundo mês do ano da graça de dois mil e treze, o senhor absoluto do reino científico da Gasparlândia veio dizer aos fiéis que as suas reais previsões falharam mas que tal não se deve ao seu infalível modelo científico e sim à realidade que teimosamente se recusa a colaborar -, além de que previsões são previsões e valem o que valem. Em particular, para quem está no desemprego, as previsões sobre desemprego não acrescentam absolutamente nada, como disse o senhor da Gasparlândia, o que é do mais elementar bom senso reconhecer.
E assim a recessão, que seria de 1% este ano, vai ficar em 2%. E assim a recessão acumulada durante o período de ajustamento, que não deveria ultrapassar os 4%, estará no final deste ano em 7%. E assim a economia, que deveria começar a crescer no segundo semestre do ano passado, ou no segundo semestre deste ano, passa a crescer em 2014. E assim o desemprego, que deveria ficar em 16,5%, já vai em 16,9% e ainda falta, meu Deus, tanto mês a este ano da graçaria resolve. E assim o ajustamento, que não necessitava de mais tempo, terá direito a pelo menos mais um anito.
E assim com a mesma voz arrastada própria das grandes certezas científicas, o senhor da Gasparlândia veio agora explicar aos seus fiéis que sim, claro, temos de olhar para esse problema do desemprego, que tanto nos surpreendeu ao crescer muito além do que se esperava, mas vamos já resolver isso com a revisão do código do IRC e obrigando a banca a conceder crédito à economia, algo que obviamente muito lhe faz doer a alma, porque a última coisa que deseja é obrigar os banqueiros a fazer o que quer que seja porque são pessoas de bem e a grande mão invisível deveria resolver todos estes problemas e Malthus trataria dos outros, nomeadamente do excesso de velhos reformados e pensionistas, bem como dos trabalhadores desqualifiados, que só atrapalham uma economia moderna e desviam recursos públicos que poderiam ser muito macos negrosais bem aplicados noutras áreas com mais glamour.
A aura de infalibilidade do senhor da Gasparlândia mantém-se, contudo, intocável, interna e externamente. Fosse uma alma terrena que estivesse à frente do reino e seria zurzido na praça pública, tendo de fugir da multidão em fúria, O senhor da Gasparlândia, contudo, nunca falha. A realidade tem falhas terríveis, twilight zones, buracos negros, por ondem desaparecem as mais sólidas e credíveis previsões do senhor da Gasparlândia.
Nada disso, contudo, o fará recuar. Se não vai a bem vai a mal. Para este ano mandou um dilúvio fiscal para arrasar a realidade, já que pelo lado da despesa não conseguiu atingir os seus objectivos. Agora, havendo o risco de as forças do mal inviabilizarem alguma das medidas que tomou, o senhor da Gasparlândia já se precaveu e com a sua enorme tesoura cortará mais 800 milhões de desperdícios (nomeadamente desperdícios com desempregados, pensionistas e, em geral, com as funções sociais do Estado).
Para atingir o reino dos céus com a sua receita, o senhor da Gasparlândia conta com os seus santos protetores, sediados no centro da Europa e que, com regularidade, pedem aos fiéis que acreditem em quem os guia e lhes pedem paciência, uma infinita paciência, porque se não for este ano é para o próximo, e se não for para o próximo será no seguinte, mas que não haja dúvidas de que este é o caminho para o reino dos céus e o senhor da Gasparlândia o nosso pastor.
Rui Beja
O Chico da Terrugem
Reflexões políticas com sabor a Alentejo - 5
Rui,
Lembrar-te-ás, muito provavelmente, da minha 2ª morada em Lisboa, na rua da Boavista, no princípio dos já longínquos anos 60 do século passado. Na dedicatória do livro que a Aninhas e eu te oferecemos pelos teus 60 anos tive ocasião de recordar esses tempos ingénuos e calorosos em que o nosso pequeno grupo de jovens sonhadores cultivava a Amizade e ambicionava conquistar o Mundo; acabámos por não conquistar o Mundo – ficou só a Amizade.
Eu trabalhava, ao tempo, na avenida 24 de Julho, por isso apanhava, todas as manhãs, o elétrico da carreira 18 no largo do Conde-Barão. Conde-Barão sempre me soou a combinação esquisita, mais parecendo nome de revista do Parque Mayer do que título nobiliárquico. Numa daquelas noites infindáveis, no Palladium, em que muito discutíamos, pouco estudávamos e, sobretudo, convivíamos, o Chico teve a paciência de nos explicar, a mim e à restante maralha, o significado de tão singular nome:
Barão de Alvito, o primeiro título de Barão concedido em Portugal, foi criado por D. Afonso V a favor de D. João Fernandes da Silveira, marido de D. Maria de Sousa Lobo, 5ª senhora de Alvito. No século XIX o 14º Barão, por ser também Conde de Oriola, solicitou e foi autorizado a usar o título de Conde-Barão de Alvito. O Largo chama-se assim por causa do palácio que ainda ali existe, morada dos Condes-Barões até ao terramoto de 1755.
Não sei bem porquê lembrei-me, há uns dias, desta estória, e liguei ao Chico para saber se ele e a Rita de Cássia nos acompanhavam num almoço na Pousada de Alvito. Obtive um sim imediato, mas sub conditione: após o almoço teríamos que nos deslocar, os quatro, a um determinado local, muito do agrado do Chico, mas que ele não visitava há sensivelmente um ano; tal como nos rally papers o nome do local só seria conhecido após o almoço. Concordei.
Foi extremamente agradável conduzir por entre um extenso manto verde, ligeiramente ondulado, aqui e ali salpicado por maiores ou menores manchas brancas ou amarelas constituídas por milhares de minúsculas flores, guarda avançada da primavera que já se adivinha.
Marcáramos encontro na Igreja Matriz, por volta do meio-dia. Chegámos praticamente ao mesmo tempo e aproveitámos para percorrer calmamente as três naves do templo, maravilhados, sobretudo, com a policromia dos belos azulejos de tapete, uns azuis sobre fundo branco, outros amarelos ocre. Detivemo-nos junto ao túmulo do 1º Barão de Alvito e de sua esposa.
- Emociono-me sempre que estou diante do túmulo de uma grande figura do passado -comentei.
- Como se, por artes de perlimpimpim, te fosse autorizado ultrapassar, ainda que por breves instantes, a impenetrável barreira do tempo e ficasses, face-to-face, com um daqueles que, por obras valerosas, da lei da morte se libertaram – acrescentou o Chico.
- Precisamente.
- Imagina só que, neste preciso instante, não te encontravas aqui, na Igreja Matriz de Alvito mas sim em Coimbra, no Mosteiro de Santa Cruz, diante do túmulo de D. Afonso Henriques.
- Mas porquê Coimbra e o túmulo de D. Afonso Henriques?
- Se não se importam, vamos saindo. Os templos são lugares de oração e de introspeção, não de divagação. Conversemos enquanto nos dirigimos para a Pousada.
Portugal chegou a esta situação de sufoco, a este beco sem saída, porquê? Foi uma raspadinha que se comprou, e, coitados, tivemos azar? Claro que não. Devem existir responsáveis, onde quer que estejam, quem quer que sejam. Enquanto não formos capazes de exorcizar o passado nunca conseguiremos construir as necessárias defesas que nos possam vir a proteger no futuro. Somos, infelizmente, um país de empatas. Reparem na morosidade da Justiça: qualquer caso que envolva um nadinha de complexidade são anos e anos, nunca menos de uma dezena, consumidos em investigações e mais investigações, e audiências, e recursos. E as Comissões Parlamentares? Sabemos quando se iniciam, as televisões encarregam-se de nos noticiar com a devida pompa e circunstância, quase nunca sabemos quando terminam, se acaso chegam a terminar, nem quais são as suas eventuais conclusões.
- E que tem tudo isto a ver com o túmulo de D. Afonso Henriques?
- Portugal, este nosso país chamado Portugal existe desde quando? Desde D. Afonso Henriques, não é? E Coimbra, a bela Coimbra foi sua capital, a sua primeira capital. Além do mais Coimbra também é capital do Saber desde D. Dinis e da sua Universidade e capital do Amor desde D. Pedro I e D. Inês e da sua paixão.
Pois muito recentemente, precisamente em Coimbra, realizou-se um Congresso do PS e uma das suas teses diz mais ou menos que querer assacar a um qualquer Governo a responsabilidade pela crise não é sério, e que justo será reconhecer que todos os Governos tiveram a sua responsabilidade na situação do país. Reparem, o texto é bem explícito: todos os Governos. O atual é muito mau, isso toda a gente já sabe, mas, de acordo com o documento, todos os que o antecederam foram igualmente maus, são todos responsáveis. E o próximo, como será? A acreditar na tese que acabei de vos referir, a mais elementar das leis das probabilidades não deixa qualquer margem para sequer podermos duvidar de que também será mau. A não ser que nos seja prodigalizado o singular milagre de virmos a ser os felizes contemplados com uma meia-dúzia de garrafões de deutsche Wasser previamente abençoados por Frau Merkl e que o Sr. Prof. Cavaco Silva utilizará para aspergir cada um dos membros do novo Governo aquando da respetiva tomada de posse.
Regredindo no tempo, Governo a Governo, onde é que se faz stop? Quem é o primeiro responsável por todo o mal que se tem vindo a fazer a este Povo? D. Afonso Henriques, obviamente! Imaginem só o seu atual estado de espírito, praticamente votado ao esquecimento, condenado a permanecer encerrado até à eternidade no meio de uma meia dúzia de lajes.
‘- Sou eu o primeiro responsável? – começaria ele a desabafar – Para Portugal conquistar a sua independência tive que me zangar com a senhora minha Mãe, tive que me bater heroicamente contra o meu primo Afonso e contra o meu genro Fernando, tive que lutar contra os Mouros infiéis para lhes sacar território e até tive que enfrentar um poderoso Papa. E tudo isto para quê? Para chegarmos a este estado de coisas? Não me tivesse eu ferido na coxa quando tentava sair à pressa de Badajoz e ainda era homem para pegar numa espada e enfrentar os inimigos de Portugal. Assim, aleijado, é que não. Que posso eu fazer? Já o decidi: vou deixar de usar como assinatura Ego Alfonsus Portugalliae Rex, vou enviar um emissário ao Papa solicitando-lhe que anule a bula Manifestatis Probatum e vou devolver esta terra ao Reino de Leão, de cuja jurisdição nunca deveria ter saído.
Uma última nota gostaria de acrescentar: Quando abandonei este vosso mundo o Garb ainda estava em poder dos Mouros infiéis, foi o meu bisneto Afonso III que o conquistou. Quem vos mandou a vocês, muitos séculos depois, depositar os destinos de Portugal precisamente nas mãos de um Mouro, todavia cristianizado, mas oriundo do Garb? Porque ele vos iludiu afirmando repetidamente que estava a transformar Portugal num oásis? E vocês, pobres ingénuos, foram na conversa. Ignoravam, porventura, que nos oásis não se pesca nem se faz agricultura? E quando ele decidiu mandar vender os barcos e as alfaias agrícolas, por desnecessários, vocês, hipnotizados, não se cansaram de aplaudir, e de aplaudir. E eu é que sou o culpado?’
Esta seria certamente a fala de D. Afonso Henriques.
Saltando para este nosso tempo, o Sr. Dr. Álvaro, o Sr. Ministro da Economia, reconheceu, durante uma sessão para militantes do PSD, que o Governo assumia com humildade o facto de ter falhado no tocante à Economia e ao Emprego. Será que este homem não tem vergonha na cara? O que é que ele tem estado lá a fazer?
E não foi o Sr. Dr. Relvas que afirmou, sem se rir, que o Desemprego jovem lhe tira o sono? Não acham que é de ter pena do pobre coitado do Sr. Dr. Relvas? É que ele, pobrezito, com tanto dossiê para analisar, com tanta reunião a que presidir, além de não descansar convenientemente durante a noite, como muito bem merece, ainda tem que perder um ror de horas durante o dia, mal acomodado nas cadeiras desconfortáveis do Centro de Saúde da área da sua residência, ansiando pela receita de uma qualquer nova droga milagrosa que o consiga pôr de novo a dormir.
Confiança, meus amigos, confiança, devemos ter confiança! O Sr. Dr. Relvas, qualquer dia já poderá dormir descansado, como um anjo. Pois o Sr. Dr. Gaspar, o nosso insigne Ministro das Finanças afirmou, um destes dias, durante uma reunião no PSD, que tudo se está a encaminhar para virmos a ter um Estado Social ainda melhor do que o atual. E também não se riu.
Falou-se muito do Titanic em abril passado, pelos 100 anos da bem conhecida tragédia. Imaginem o Sr. Dr. Passos Coelho investido nas funções de Comandante. Após o embate contra o iceberg, quando tudo já está irremediavelmente perdido, o navio a afundar-se rapidamente, ele, com a sua bem colocada voz de barítono, far-se-ia fazer ouvir através do sistema de altifalantes: ’Recomendo-vos toda a acalma. Tudo está a decorrer conforme previsto. Estamos no bom caminho. É certo que não existem salva-vidas para todos, mas não há qualquer problema. Eu e os meus oficiais é que necessitamos sair muito rapidamente, nos primeiros salva-vidas disponíveis, temos um encontro inadiável com a troika de armadores. Quanto a vós, meus queridos passageiros, continuem a agitar fortemente os braços tal como têm vindo a treinar, assim mesmo, para cima, para baixo, para cima, para baixo, cada vez mais rápido, cada vez mais rápido, vão ver que não se afundam como o navio, que vão conseguir sair daqui a voar, que vão cruzar os céus como bandos elegantes de aves migratórias, que vão todos chegar sãos e salvos ao vosso destino; e não é de mais precisar que tudo isto acontece sem o recurso a qualquer intervenção divina, graças tão somente à subida competência do vosso Comandante, que sou eu, e dos meus oficiais.’
Eu não sei se existirá um qualquer Sindicato ou Ordem ou Associação dos Humoristas deste país; se acaso existir terá toda a legitimidade para apresentar queixa na ERC contra este bando de indivíduos: é que se trata de uma intolerável concorrência desleal.
- Referiste-te há pouco ao Dr. Relvas. Não achas que o facto de o terem impedido de falar foi um atentado à liberdade de expressão?
- Uma treta, meu amigo. O Sr. Dr. Relvas que se apresentou para falar não era o Sr. Dr. Relvas, um cidadão que acaso pretendesse expressar-se livremente, era o Sr. Ministro Relvas, que pretendia falar na sua qualidade de Ministro. E o Sr. Dr. Relvas é Ministro porquê? Tão somente porque o Povo, o único, o verdadeiro detentor da Soberania, delegou o seu exercício no Sr. Dr. Relvas e no seu Grupo, mas por um tempo determinado e baseado em certos pressupostos. E quais eram esses pressupostos? Aquilo a que o Sr. Dr. Relvas e o seu Grupo solenemente se vincularam quando, livremente, apresentaram as suas propostas eleitorais. O Povo escolheu-os, porquê? Porque as suas propostas eleitorais lhe pareceram melhores do que as dos restantes concorrentes. No momento em que esses senhores violaram liminarmente o contratualmente estipulado perderam toda a legitimidade para continuarem a exercer o poder delegado. Estão a mais, são meros zombies. Se se persiste em aceitar que continuam a ter legitimidade para governar, quem é que, no futuro, acreditará mais em promessas eleitorais? Os comícios, as conferências de imprensa, os debates, servirão para quê? Qual a sua utilidade pratica? É só toda a gente a perder tempo e a gastar dinheiro inutilmente. É por isso que calar o Sr. Ministro Relvas e os outros é prestar um serviço cívico, que deveria ser entusiasticamente aplaudido por todos.
Se for entendido, como muito honestamente me parece que deveria ser, que as promessas eleitorais não servem para nada, então para que se continuam a fazer promessas eleitorais? Para que se gastam uns fartos milhões do já muito desgastado erário público com a montagem desnecessária do triste espetáculo de folclore que são as Campanhas Eleitorais? Não seria muito mais honesto, mais económico, mais racional transformar as Eleições numa espécie de Totoloto? Supondo que havia 10 Partidos: colocavam-se em cada uma de 10 tômbolas 10 bolas numeradas de um a 10; a quantidade de vezes que saísse um determinado número referente a um determinado Partido representaria a percentagem de votação nesse Partido. É simples, é eficaz, é barato. E eliminavam-se, assim, de uma vez por todas, os inconsequentes cantos de sereia que são as falsas promessas eleitorais.
Almoçar numa Pousada num vulgar dia de semana na época baixa pode tornar-se algo frustrante para quem fica incomodado quando tem que saborear uma bela refeição numa sala praticamente vazia. Embora, além da nossa, só houvesse mais uma mesa ocupada, esta por dois casais de holandeses (revelou-nos a empregada), o ambiente, o requinte do serviço, a qualidade da confeção, ultrapassaram qualquer eventual desconforto gerado pela ausência de companheiros de repaste.
No fim do almoço o Chico revelou-nos então qual o local a visitar: tratava-se do Santuário de Nossa Senhora de Aires, que fica nas imediações de Viana do Alentejo, a cerca de 11 km de Alvito. É um templo magnífico, barroco, erigido no século XVIII e dedicado ao culto mariano, cujo isolamento no meio da planície sobreleva ainda mais a sua imponência, a cúpula lembrando a da Basílica da Estrela. Antepassados do Chico terão estado na origem da sua construção. O interior do templo tem uma série de salas onde se exibem inúmeros ex-votos. O Chico conduziu-nos até junto de uma enorme fotografia emoldurada onde estão retratadas cerca de umas vinte pessoas com todo o aspeto de estarem posando durante a realização de uma Ação de Graças. O Chico quase que me obrigou a copiar a legenda. Aqui vai ela:
‘Viana do Alentejo 21 de janeiro de 1918 em honra de Nossa Senhora de Ayres por esta miraculosa virgem debelar, com rapidez, a grava pneumónica esse terrível flagelo que, assustadoramente, grassava na aludida vila.´
- Repara naquele senhor, ali no lado esquerdo, com um ar perfeitamente compenetrado – apontou o Chico – É meu bisavô, avô de minha mãe. Não o cheguei a conhecer mas acho que era um tipo fantástico, profundamente devoto da Senhora de Aires. E esta tradição tem-se mantido na família. Eu próprio costumo deslocar-me aqui pelo menos uma vez por ano, para Lhe confessar os meus deslizes e para Lhe solicitar proteção, não só para mim mas também para os meus concidadãos. Se, por acaso, a Senhora de Aires conseguir que nos livremos deste bando de malfeitores que, bem falantes e bem engravatados, nos invadem as casas e nos saqueiam os bolsos, prometo-te que será ali colocada mais uma fotografia, com uma legenda apropriada, e que tu também farás parte dela. Mas hoje estou bastante pessimista, não acredito no que quer que seja.
- O que nos pode, de certa maneira, confortar, é que, felizmente, dispomos sempre de um último recurso, que é o Presidente da República.
- O Sr. Prof. Cavaco Silva? A ele ajusta-se na perfeição a conhecida frase muito usada nas audiências em tribunal: E aos costumes disse nada.
Com um forte abraço do
Zé
Gaeiras, 24 de fevereiro de 2013.
Infâmia, vexame e inconsciência ultraneoliberal
Desabafos de indignação face à inconcebível, inaceitável e premeditada destruição socioeconómica de Portugal e dos portugueses, perpetrada pelo "(des)governo do nosso país" em conluio com os "falcões da União Europeia" e os "esbirros da troika"
Taxa de desemprego (in Público de 13Fev2013) Evolução do PIB (in Público de 14Fev2013)
Desemprego: falta de emprego; perda de lugar que desempenhava.
Brutal: desumano, incivil.
Infâmia: acto ou dito que revela sentimentos vis; descrédito; calúnia, aleive.
Vexame: vergonha; escândalo, desonra, afronta; opressão.
Inconsciência: falta de responsabilidade moral; acto que a consciência deve reprovar; desumanidade.
Ultraneoliberal: que defende a desregulamentação e rejeita a intervenção, ainda que limitada, do Estado.
Tanto que há para desabafar sobre a loucura como, com total desprezo pelo presente e pelo futuro dos portugueses, está a ser feita a consolidação orçamental no nosso país! Tanta indignação que é suscitada pela mentira, hipocrisia e soberba com que se nos dirigem aqueles que (des)governam Portugal e aqueles outros que - de portas escancaradas por Passos, Gaspar & C.ª - ditam o que tem de ser feito para servir os seus interesses e as suas tenebrosas teorias! E, no entanto, tão difícil que é encontrar palavras que não tenham já sido ditas pelas mais autorizadas e credíveis vozes que, independentemente de filiações ou simpatias político-partidárias, têm, de forma consubstanciada, alertado para a criminosa política económica e a trágica destruição social que estão a ser deliberadamente levadas a cabo pelos ultraneoliberais que tomaram contam do nosso país.
Porque quem cala consente, porque não gosto que me façam de tolo, e porque a palavra escrita continua a ser o instrumento de denúncia mais temido por quantos actuam com pérfida má-fé, deixo aqui registado que não me resigno a um fado que não pode ser o nosso, e que não me entrego à comodidade de pensar que não vivo [ainda?] a situação dramática que desabou sobre tantas e tantas famílias. Enfim, que assumo ter idade e experiência de vida que me permitem fazer coro com aqueles que, com critério e conhecimento de causa, afirmam sem tibiezas que o actual poder executivo perdeu legitimidade política para se manter em funções e, a cada dia que passa, mais contribui para o descalabro perigosamente irreversível da sociedade portuguesa.
E não, não me venham dizer que ou é assim ou é o caos porque pode não haver alternativas democráticas maioritárias, porque a senhora Merkel vai amuar, porque os "mercados" nos vão estrangular, porque... blá, blá, blá!!! Não, porque as coisas não são assim, o mundo não é a preto e branco, e, não nos esqueçamos, porque o gang [a palavra inglesa que significa "grupo"] ao qual estamos entregues, ainda não acabou o seu objectivo de destruição; basta pensarmos no famoso corte de 4 mil milhões de euros, a que outros se seguirão, lembrarmo-nos que têm em mente tornar definitivo o corte nas pensões e nos salários da função pública, tomarmos consciência do que significa a meta de 14% de desemprego estrutural definida por esta troupe [a palavra francesa que significa "grupo de artistas que actuam em conjunto"] e, cereja em cima do bolo, recordarmos o desmembramento do Estado Social a que se lançaram como "gato a bofe".
Não me venham falar no "desvio colossal", na "pesada herança" que os (des)governantes de agora juraram nunca serviria de desculpa porque sabiam muito bem qual a situação em que o país se encontrava quando decidiram chumbar o chamado "PEC 4" e afirmaram estar mais do que cientes do que era necessário fazer para, cortando simplesmente nas "gorduras do Estado", pôr o país no rumo certo.
Porque não tenho memória curta, não esqueço que, além de terem forçado o recurso à ajuda externa, foram signatários do memorando acordado com a "troika", disseram que o respectivo conteúdo correspondia ao seu programa de governação e, pasme-se, chegaram ao ponto de apregoar, alto e bom som, que iriam mais longe do que o estabelecido no memorando porque assim conseguiriam melhores resultados.
Não me esqueço igualmente, acho que ninguém se esquece mesmo que se queira fazer de esquecido, dos chavões e mentiras usados pelo então candidato a primeiro-ministro, aquando da campanha para as eleições legislativas de 2011, para mais facilmente tomar de assalto o poder e perverter o seu exercício; para que não restem dúvidas, aqui fica o link para um bem elaborado e bastante completo "auxiliar de memória", que alguém denominou «Eis um homem para ser levado a sério»: http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=SWKerbNIQcU# .
Também não aceito a teoria do "crime e castigo": os portugueses portaram-se mal, não souberam aproveitar as oportunidades que lhe foram propiciadas, gastaram acima das suas possibilidades, endividaram-se sem fazer contas à capacidade de solvência dos compromissos que assumiram, e agora não podem querer que sejam os alemães a sacrificar-se para os ajudar ou os "mercados" a assumirem os prejuízos, porque "quando a cabeça não tem juízo o corpo é que paga".
Não aceito porque se trata apenas de meia verdade. Os portugueses partiram, em Abril de 1974, de uma situação calamitosa em termos de educação, de cultura, de saúde, de infraestruturas básicas e de tudo o mais que qualifica um país democrático e desenvolvido. Desde então, Portugal acolheu um milhão de retornados das ex-colónias, criou um Serviço Nacional de Saúde exemplar, progrediu substancialmente no Sistema de Educação e no nível cultural, desenvolveu o esquema de Segurança Social, construiu uma importante rede de infraestruturas e... cometeu erros, como só não comete quem nada faz.
Não aceito porque, como é mais do que sabido, muitos se aproveitaram das nossas insuficiências básicas e do legítimo sonho de progresso rápido, ao nível da escala europeia, para fazerem os seus negócios chorudos e obscuros, sem, também eles, sopesarem como era seu dever os riscos que estavam a correr. E neste "eles", surgem em primeiro lugar, não por simples casualidade, a Alemanha e os ditos "mercados".
A Alemanha, por mais que queira, não pode esquecer as duas guerras mundiais que provocou no século XX, tem obrigação de se lembrar que deve àqueles a quem agrediu os enormes apoios que recebeu para se reerguer das cinzas, e não pode apagar do mapa da história que levou quarenta anos para pagar as ajudas financeiras que recebeu; como não se pode também fazer de esquecida relativamente aos benefícios que colheu da criação da moeda única, em prejuízo de países de economia mais frágil como é o caso de Portugal.
Os "mercados", não passam, por mais que os procurem branquear, de uma forma sofisticada para denominar o capitalismo financeiro - selvagem e ultraneoliberal - que, sem escrúpulos e pervertendo as mais elementares regras da economia de mercado, destrói riqueza e enriquece magnatas financeiros utilizando os mais nebulosos e corruptos esquemas de fraude e abuso de poder; atente-se na drástica mudança de comportamento que tiveram em relação aos juros da dívida portuguesa, não porque a relação entre o nosso endividamento e a nossa capacidade de gerar meios para o solver tenha melhorado (bem pelo contrário), mas simplesmente porque a senhora Merkel foi forçada a "fechar os olhos" às medidas de protecção do euro tomadas pelo Banco Central Europeu.
Finalmente, o mais importante. Que se pode esperar do desemprego brutal que temos e daquele (os tais 14% estruturais) que nos "recomendam"? Como é possível aguentar um primeiro-ministro que fala destes números como se falasse na classificação de um clube de futebol e, com a maior ligeireza, avisa que ainda irá piorar ao longo deste ano? Como se pode esquecer o drama financeiro e psicológico de novos e velhos que, além de não encontrarem emprego, vêem ser-lhes vedado o acesso ao respectivo subsídio? Como podem sobreviver as famílias que têm todos os seus membros em situação de desemprego? Que perspectivas podem ter os nossos jovens que não encontram hipóteses na emigração? Que futuro está reservado para as gerações maduras que assistem à partida dos jovens mais qualificados e à degradação demográfica do seu país? Que consequências devastadoras se podem esperar da aniquilação a que estão a ser sujeitas as classes médias, aquelas que mais podem contribuir para a democracia e progresso do país? Que esperança e que condições são propiciadas às classes mais desfavorecidas para que aspirem e trabalhem no sentido de progredirem no patamar socioeconómico?
Não, não aceito que tudo depende da vontade de Passos, Gaspar & C.ª e que, dentro do nosso (des)governo, dentro dos partidos da maioria, todos tenham de estar tolhidos pela chantagem do "ou é assim ou é o caos". Não, não aceito que haja ministros que mandem recados para a comunicação social sugerindo que não concordam mas... não há alternativa.
Há alternativa. Batam-se por ela. Imponham que o prazo para pagar a dívida seja alargado, para que os juros sejam revistos em baixa, para que a coesão na Europa não seja uma ficção. Lutem para que a situação socioeconómica não se degrade ainda mais por via das muitas medidas de contracção que se anunciam e das nenhumas acções para o crescimento que se conhecem.
E se não tiverem resultado, o que custa acreditar porque ninguém - na União Europeia, no BCE e no FMI - está interessado num falhanço abrupto e estrondoso de Portugal, peçam a demissão, abandonem o (des)governo e apresentem-se de consciência tranquila e cabeça levantada. Porque Portugal não vai entrar em desgraça se o (des)governo cair. Portugal e os portugueses têm a temer, sim, se nada for mudado... e quanto mais depressa melhor!
Dito isto, e quanto mais não haveria para dizer, surge a questão inevitável, relativamente à qual quem de direito não responde nem tira as devidas consequências:
O REGULAR FUNCIONAMENTO DAS INSTITUIÇÕES ESTÁ ASSEGURADO?
Rui Beja
APRe! na manifestação de 2 de Março de 2013
Porque sendo o Estado Social um dos pilares da nossa Constituição, o mesmo não pode ser posto em causa enquanto a mesma vigorar
Contribuição Extraordinária de Solidariedade
Conclusões de parecer emitido pelo eminente constitucionalista Prof. Doutor Gomes Canotilho
Dado o extremo interesse público desta matéria e porque fotocópia do respectivo teor circula abertamente na Internet, tomo a liberdade de transcrever, com o muito respeito devido ao seu autor, as 'Conclusões' de parecer emitido pelo credenciado Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho com o fim de esclarecer a conformidade constitucional da norma contida no artigo 78º da lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2013), a qual impõe uma "contribuição extraordinária de solidariedade". Permito-me, dada a extensão do parecer, apresentar apenas as referidas 'Conclusões', as quais são, por si só, exemplarmente claras, esclarecedoras, relevantes e coerentes com o prévio enquadramento constitucional produzido pelo Prof. Canotilho relativamente ao problema em análise:
...
3. Conclusões
1. A distribuição das “medidas de austeridade” não poderá deixar de se conformar com critérios próprios de um Estado constitucional.
2. A “contribuição extraordinária de solidariedade” tem a natureza de imposto, distinto do IRS. Trata-se, na verdade, de um “imposto de classe”, que atinge apenas reformados e pensionistas, pré aposentados e equiparados e que apresenta características de imposto sobre o rendimento.
3. Resulta do art. 78.º da LOE 2013 a dupla tributação dos rendimentos de pensões, em sede de IRS e em sede de imposto especial sobre o rendimento – a designada “contribuição especial de solidariedade” –, em violação da regra da unicidade consagrada no art. 104.º, n.º 1, da CRP.
4. A “contribuição extraordinária de solidariedade”, juntamente com outras medidas fiscais e parafiscais, designadamente em sede de IRS, conduz a uma excessiva desigualdade de tratamento entre rendimentos das diversas categorias, configurando uma violação do princípio constitucional da igualdade, na sua dimensão de igualdade perante os encargos públicos.
5. Enquanto imposto sobre o rendimento, assinala-se a distorção que emerge da desconsideração do critério da capacidade contributiva, que levará a que contribuintes com rendimentos de outras categorias que evidenciem maior capacidade possam, na verdade, vir a suportar uma taxa efetiva de tributação inferior.
6. Do art. 78.º da LOE 2013 resulta um agravamento fiscal para reformados e pensionistas que desconsidera a pessoalidade do imposto, em virtude de a “contribuição especial de solidariedade” não atender às necessidades e aos rendimentos do agregado familiar, em violação da norma contida no art. 104.º, n.º 1, da CRP.
7. Taxas efetivas de tributação da ordem de grandeza daquelas que impendem sobre os reformados e pensionistas, e para a qual contribui decisivamente a “contribuição especial de solidariedade” (art. 78, n.os 1 e 2 da LOE 2013), assumem um manifesto carácter confiscatório.
8. A medida prevista no art. 78.º da LOE 2013 reveste um carácter expropriatório, atingindo o núcleo fundamental da posição jusfundamental pensionista.
9. Para que seja minimamente assegurada a previsibilidade e a estabilidade do sistema jurídico-fiscal, postulados pelo princípio do Estado de direito, não são admissíveis taxas efetivas de tributação da ordem de valores daquelas que impendem sobre os rendimentos de pensões. Estas traduzem-se num postergação excessiva e intolerável dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos, ínsitos no princípio do Estado de Direito.
10. A norma contida no n.º 8 do art. 78.º da LOE 2013, ao prever a consignação das receitas provenientes da CES, ofende o princípio da não consignação de receitas previsto no artigo 7.º da Lei do Enquadramento Orçamental (LEO), traduzindo-se numa ilegalidade qualificada, por violação de lei com valor reforçado.
Salvo melhor juízo, é este o nosso parecer.
Coimbra, 16 de Janeiro de 2012
Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho
Ver texto completo em: http://www.4shared.com/office/FbHteDaF/Canotilho-pensionistas.html
Rui Beja
O Chico da Terrugem
Reflexões políticas com sabor a Alentejo - 4
Rui,
Antes de mais peço-te que me desculpes por, contrariamente ao que havíamos combinado, não te ter voltado a contactar – é que tive que regressar ao Alentejo e só hoje consegui dispor de algum tempo para te escrever. No sábado (dia 2) o Chico ligou-me: ‘Necessitamos ficar mais uns dias em Lisboa. O tempo parece que vai estar bom. Querem vir almoçar connosco ao restaurante da Boca do Inferno? Eu faço a reserva’. Concordei. Ainda pensei em desafiar-te para que tu e a Adélia se nos juntassem mas depois lembrei-me do compromisso de que me tinhas falado, e desisti.
Muita e muita gente, estacionamento difícil renhidamente disputado. Um dia muito luminoso, nada de vento, zero ondas, o céu e o mar exibindo o azul dos dias de gala. Almoço excelente, conversa de circunstância qual fase de aquecimento que antecede a entrada dos atletas na alta competição.
O primeiro mote fui eu quem o lançou:
- Tem sido muito badalado o facto de alguns deputados acumularem a sua atividade parlamentar com ligações a Grupos Económicos ou grandes Escritórios de Advogados que são parceiros ou importantes fornecedores de serviços ao Estado.
- E onde auferem chorudos proventos. Não era o que querias acrescentar?
- Sim, Chico. Mas o que me impressiona é que, questionados pela Comunicação Social, todos afirmem estar de consciência tranquila.
- E, obviamente, estão de consciência tranquila. Duvidas? Imagina um deputado, casado, dois filhos, um andar em Lisboa numa zona nobre da cidade, para pagar, os filhos num colégio particular, uma casa de férias no Algarve, para pagar, a mulher não trabalha, suportaria tudo isto com o magro vencimento de deputado? Claro que não! Será, possivelmente, deputado pela Guarda. O que é que ele sabe da Guarda? Que é muito fria? Que é muito alta? Provavelmente nunca lá esteve nem saberá onde fica, foi o Partido que decidiu. Mas ele é um bom chefe de família, a mulher e os filhos acima de tudo. Se calhar a ser (e ele fará tudo para o ser) indigitado para uma qualquer Comissão destinada a propor ou a ratificar a adjudicação de uma obra ou de serviços de consultoria quem irá posicionar na linha da frente? Muito naturalmente que, em caso algum, ousará arriscar, nem em pensamentos, o atual e o futuro bem-estar da sua família. Percebes agora porque todos eles afirmam estar de consciência tranquila? Claro que isto tinha uma solução muito fácil: era fazer publicar uma eficaz Lei de Incompatibilidades. O que não é possível porque a História nos ensina que não foi o bêbedo quem fez publicar a Lei Seca.
- Hoje não estás nos teus dias, Chico. Não costumas ser assim tão sarcástico.
-Ai estou, estou. Escolhi foi mal a sobremesa. Está-me a fazer inveja o teu leite-creme e eu não me estou a entender mesmo nada com este sorvete de limão com vodka, excessivamente líquido, quase nada de sorvete.
Terminámos o almoço. As senhoras decidiram ir investigar o recheio das pouco mais de meia dúzia de bancas de artesanato e eu e o Chico lá fomos, por insistência dele, prestar vassalagem à placa que perpetua o suicídio simulado do mago inglês Aleister Crowley em setembro de 1930. O Chico indignou-se pelo facto de o texto estar praticamente ilegível e por não existir uma tradução em inglês. Como era inevitável começámos a falar de Fernando Pessoa e veio à baila o conto ‘O Banqueiro Anarquista’.
- Banqueiros! – comentou o Chico – Os Judeus dos tempos modernos.
- E de todos os tempos. – acrescentei – Que me dizes das infelizes declarações do banqueiro Ulrich?
- Nós, os Portugueses, enquanto povo, somos uns tipos profundamente sentimentais; colocamos quase sempre em primeiro lugar o Coração e só depois a Razão. Esta nossa característica, talvez genética? Tem aspetos manifestamente positivos, por exemplo a nossa elevada propensão para a solidariedade, mas acaba por nos limitar bastante sempre que somos levados a julgar - falta-nos quase sempre a necessária objetividade. Já reparaste que, muitas vezes, até sem darmos por isso, nos ocupamos a esquartejar o mundo que nos rodeia e a colocar etiquetas em cada uma das respetivas parcelas: gosto, não gosto? E, assim que é preciso julgar, ainda antes de pormos a cabeleira e de vestirmos a toga, subimos ao armário onde guardamos os nossos catálogos para sacar o rótulo adequado, cujo descritivo irá balizar a nossa decisão final. Este comportamento identifica-se normalmente como Clubite aguda: sou do Clube A (os outros não jogam nada, limitam-se a comprar os árbitros), sou do Partido B (os outros são incompetentes e ladrões), sou Português (de Espanha nem bom vento nem bom casamento). Eu prefiro utilizar a metáfora Mensageiro e Mensagem. Nós, quase sempre, decidimos em função do Mensageiro, pouca atenção prestamos à Mensagem.
Permite-me que, muito rapidamente, te recorde uma página triste da História deste pobre país, a qual evidencia muito claramente o que te acabo de dizer. Em 1506 grassava em Lisboa uma terrível peste. Nesses tempos recuados havia duas possíveis terapêuticas para as pessoas se livrarem da peste: (1) os mais ricos (rei incluído) deixavam a cidade e iam espairecer para sítios arejados, (2) os restantes permaneciam na cidade e apinhavam as igrejas, rezando. Num determinado domingo de abril, durante a missa em S. Domingos, um raio de sol mais atrevido terá decidido atravessar a igreja e foi-se esborrachar no rosto de um Cristo crucificado. Uma senhora que presenciou o fenómeno ficou deslumbrada com o efeito luminoso e desatou a gritar: ‘Milagre! Milagre’. Um cristão-novo (sabes, um judeu convertido) tentou explicar-lhe que era apenas o reflexo de um raio de sol, mas a multidão que, entretanto, se tinha acotovelado à volta dos dois, ignorou a explicação e espancou-o até à morte. Durante três longos dias mais de 2.000 pessoas, homens, mulheres e crianças, foram perseguidos, torturados e queimados em fogueiras. Como vês, se o Mensageiro é herege para que é que as gentes querem saber da Mensagem?
Em outubro passado, se não estou em erro, o banqueiro Ulrich afirmou que os Portugueses ainda aguentavam mais Austeridade. Como o Mensageiro era herege nem sequer se ensaiou promover uma pequenina discussão sobre a hipotética validade da Mensagem. Poder-me-ás contrapor que a observação do banqueiro terá sido despropositada, que enferma de uma maior ou menor dose de hipocrisia, tudo bem. Mas perseguir o Mensageiro, queimá-lo nem que seja só em efígie na praça pública tem algum efeito prático? Faz desaparecer a peste? Não, não faz desaparecer a peste. Ao invés de se perseguir o Mensageiro porque é que não se exige aos Sábios e aos Políticos deste país que nos revelem a Verdade? Uns mandam-nos mudar de ares (emigrar), outros mandam-nos rezar e queimar hereges. Há uma solução para nos livrarmos da peste? Há várias soluções? Quais são? Se não as há, então é infelizmente verdade que estamos condenados a aguentar mais, e mais, e mais, sabe-se lá até quando.
Três meses depois, já neste mês de fevereiro, o banqueiro voltou a insistir que o país ainda aguenta mais Austeridade. Mais uma vez, lá caiu o Carmo e a Trindade! Nestes últimos três meses a situação melhorou, ou antes piorou? Claro que piorou. E as pessoas continuam a aguentar. Conheces, porventura, as mais recentes sondagens? Quantos Portugueses continuam a apostar no Governo? Uns 40%? Se alguém perguntasse a estes Portugueses se ainda aguentam, que responderiam eles? Ontem, amplamente publicitada pelas chamadas Redes Sociais, teve lugar, em várias cidades deste pobre país, uma manifestação de Indignados. Quantos Indignados deram a cara? Uma meia dúzia. E os que ficaram em casa? Ainda não estarão Indignados? Continuam a concordar com as políticas do Governo? Parece-me que sim, de contrário teriam incorporado as manifestações.
Confesso-te que tudo isto me preocupa muito seriamente. Enquanto os senhores que mandam na política, independentemente da Ideologia ou do Partido, não se convencerem que eles, enquanto Corporação, são moralmente responsáveis pelo destino de milhões de pessoas, e que não foram eleitos para passarem o mandato a papaguear sound bytes ou vomitar insultos recíprocos com o propósito único de fazerem manchete nos telejornais das 8, mas sim para honestamente, serenamente, com elevado sentido ético e profissional, se esforçarem por descortinar, propor, aprovar e pôr em pratica as mais adequadas soluções que visem melhorar a vida dos cidadãos que os elegeram, bem como das suas famílias e de seus descendentes, enquanto isso não acontecer estamos positivamente tramados. Afirmava Churchill que um político só se converte num estadista quando começa a pensar nas próximas gerações e não nas próximas eleições.
O discurso vai longo, noto-te enfadado, mas responde-me, peço-te, analisando friamente os dados disponíveis, esquecendo por breves momentos a identidade do Mensageiro, e atendendo tão somente à Mensagem, até quando será humanamente suportável este sufoco? Não haverá por aí um qualquer discípulo esquecido do dr. Ricardo Jorge, com disponibilidade e talento para nos livrar de vez desta insuportável pandemia a que se convencionou chamar Austeridade?
- O. K. Chico. Mas tu, no seguimento de todas essas tuas análises, de todas essas tuas críticas, porque é que não experimentas produzir doutrina, apontar caminhos?
- Meu caro, eu não passo de um mero espetador, um espetador que se limita a observar e a comentar, que se esforça por ser imparcial, que utiliza a Razão e não o Coração. Não mais do que isso. Trabalhar, só trabalhei uma vez na vida, foi em Londres, numa loja do Piccadilly, a aviar doses de shish kebab. Mas então tinha 25 anos e estava apaixonado.
No que diz respeito à matança de 1506 foi erguido no largo de S. Domingos, em abril de 2008, portanto mais de 500 anos depois, um monumento de homenagem às vítimas.
Daqui a uns 100 anos, ao cimo da escadaria que conduz ao edifício onde hoje funciona a Assembleia da República, o então Presidente da Autarquia, numa cerimónia singela mas prenhe de significado histórico, procederá à inauguração de um pequeno monumento que constará de um pedestal com mais ou menos 1 metro e meio de altura sobre o qual, num cenário em ruinas, duas estátuas representando um casal sem-abrigo partilham o que resta de um pão. Uma placa comemorativa assinalará a efeméride: ‘Em memória dos Portugueses de há 100 anos que, ingenuamente, confiaram nas palavras do Sr. Presidente do Conselho de Administração da Assembleia da República, Sr. Eng. Couto dos Santos, que afirmou a um jornal que os Portugueses deveriam ter confiança nos deputados que elegeram, pois estes eram responsáveis pelos seus atos. Os Portugueses, ingenuamente, confiaram’.
Sabes o que me apetecia fazer agora? Pois era ir até aos Jerónimos cumprir um ritual que já não cumpro há algum tempo, e que consiste em contemplar, deslumbrado, a extraordinária filigrana em pedra que é o Portal Sul, ao mesmo tempo que rogava ao Anjo de Portugal, que tudo vigia lá do alto, que nos conceda o milagre de reajustar uns tantos fusíveis nas mentes dos nossos políticos por forma a que estes passem a conjugar o verbo governar como verbo transitivo que é, eu governo as finanças, tu governas a economia, ele governa a autarquia, em vez de o continuarem a conjugar como verbo reflexivo que de todo não é, eu governo-me, tu governas-te, ele governa-se. Depois iria até aos Claustros, que percorreria com muito vagar, saboreando religiosamente o exoterismo de cada um dos medalhões. Mas não. Uma das paredes da sala de estar da nossa casa aqui de Lisboa apresenta uma manchas de humidade e a Rita de Cássia decidiu aproveitar as pequenas obras que temos que mandar fazer para efetuar algumas modificações na decoração, tais como pintar a sala de uma outra cor, mudar os cortinados, reformar uma parte da mobília. Por isso marcou uma reunião hoje à tarde, lá em casa, às 5, com um sobrinho, casado com uma sobrinha, e que é arquiteto de interiores. Pessoa escreveu na Mensagem: ‘Cumpriu-se o Mar… falta cumprir Portugal’. Eu diria: ‘Cumpriu-se a vontade da Rita de Cássia… a minha ficou em águas de bacalhau’. Que queres? Mulheres!
Com um forte abraço do
Zé
Vila Viçosa,11 de fevereiro de 2013.
Dormir com o inimigo
Viriato Soromenho Marques analisa a insuportável satisfação do Governo português face à política de Berlim, na Visão de 31 de Janeiro de 2013
Com algum atraso relativamente à data da publicação, cheguei hoje à leitura deste artigo de opinião. Porque compartilho o essencial da análise e das ideias expostas pelo Professor Soromenho Marques e porque considero que justificam a mais alargada divulgação, transcrevo na íntegra o perclaro escrito, acompanhado da imagem que o ilustra.
Factos contra os cortes
Paulo Guinote desmonta as mentiras do discurso político, no Expresso de 2 de Fevereiro de 2013
Não é necessário ser um grande estudioso da matéria, nem estar especialmente atento às políticas públicas seguidas pelos países mais desenvolvidos, para se saber que a Educação, como também a Cultura, constituem os domínios mais relevantes para o progresso dos povos e, consequentemente, do nível socioeconómico dos respectivos países. Para não fugir à regra, o (des)governo que temos actua como se assim não fosse e põe o economicismo político-ideológico à frente de qualquer política que possa contribuir para ultrapassarmos a espiral recessiva em que, com o maior despudor, se quer, e nos quer, afundar.
Justifica-se, pois, dar o devido relevo ao texto do professor Paulo Guinote, Doutorado em História da Educação e intensamente dedicado às diversas formas de estudar e promover a divulgação das matérias que à Educação dizem respeito, publicado pelo Expresso na qualidade de editor convidado no âmbito do trabalho temático «Raios-X à Despesa Educação».
O discurso político apresenta como inevitáveis cortes profundos no que designam como “Estado Social”, sendo que uma das áreas mais sacrificadas é a da Educação. Para além dos já feitos apresentam-se como indispensáveis mais cortes, em virtude da crise orçamental, do alegado fraco desempenho do sistema educativo e dos investimentos já feitos, que se afirmam “acima da média” internacional.
A minha posição é clara: a inevitabilidade de tais cortes é falsa, os seus fundamentos empíricos não existem, tratando-se de uma mera opção político-ideológica que esquece a evolução da Educação nos últimos 100 anos, o enorme atraso em que estávamos há poucas décadas, os ganhos conseguidos em pouco tempo mas também que esses ganhos, recentes e pouco consolidados em termos geracionais, podem ser destruídos com uma intervenção desastrada e negligente.
Na publicação The growth of literacy in historic perspective: (Unesco, 2005) traça-se a evolução da literacia na Europa, apontando-se Portugal como o único país, a par da Albânia, Malta ou Chipre, que em meados do século XX ainda apresentava níveis a rondar os 50%, valor ultrapassado na generalidade da Europa cerca de 1900. A partir dos dados da Pordata verifica-se que entre nós o investimento em Educação só ultrapassou os 3% do PIB após 1980 e os 4% em 1991, mantendo-se abaixo dos 5% desde então com excepção de 2002. Portugal viveu os últimos séculos em situação de maior ou menor aflição económica e nunca em clima de verdadeira prosperidade. O que em parte fez com que se enunciasse a Educação como prioridade retórica, mas só excepcionalmente com uma verdadeira dimensão prática.
Alguns analistas da relação de longa duração entre crescimento económico e investimento na Educação verificaram que em alguns dos países mais industrializados os maiores investimentos em Educação até meados do século XX aconteceram nos momentos de maior crise económica, sendo isso encarado como uma «racionalidade correctora dos bloqueios do crescimento em fase de depressão» (Sandrine Michel, Éducation et Croissance Économique en Longue Période, Paris, 1999, p. 18). O que permitiu que na segunda metade do século XX crescimento económico e investimento no sistema educativo evoluíssem de forma paralela.
Em Portugal nunca passámos por fases de investimento em contra-ciclo e após um curtíssimo período que se acusa ser “acima da média” pretendem-se agravar cortes brutais com o pretexto da eficácia do investimento. O que induz em erro pois se há fenómeno mensurável com facilidade é o do aumento das qualificações académicas da população, mesmo excluindo as ocasionais certificações massivas.
O mais grave é que uma opção política errada e pela qual ninguém responderá em tempo útil, pode arruinar os ganhos alcançados com muito esforço por quem está nas escolas: alunos, famílias, funcionários e professores.
Rui Beja
Rã em panela de água morna
Amena cavaqueira, com vista para as núvens negras que o sol de Inverno teima em tapar
Como se sabe do texto anterior, o meu amigo Zé veio a Lisboa. A oportunidade surgiu e combinámos encontrar-nos. Sim, porque pese embora alguns leitores do Blog já terem mostrado as suas dúvidas, o Zé é de "carne e osso", somos amigos há mais de cinquenta anos e não podíamos deixar passar esta ocasião para irmos almoçar com as nossas caras-metades e pormos a conversa em dia. Não porque não nos víssemos desde há muito, mas porque nas últimas vezes tínhamos estado rodeados de muitos e bons amigos e desta vez dava para uma conversa mais prolongada e até para entrar em mais pormenores sobre o seu amigo Chico da Terrugem. Quatro "horitas" foi quanto durou o almoço. Ou seja, foi um ápice, nem demos pelo tempo passar e, se não fossem as nossas companheiras começarem a "tocar as campaínhas", não sei quando é que a conversa pararia.
Falámos sobre tudo e mais alguma coisa. Os filhos, os netos, os amigos, as viagens no país e lá por fora, os livros, o futebol, as vidas profissionais que percorremos. Enfim, passámos a pente fino os ditos "bons velhos tempos", que nem sempre foram assim tão bons, e, aí, começámos a derivar para os tempos mais recentes e os "maus novos tempos" que pairam sobre a cabeça dos portugueses. E também sobre algumas das muitas ideias que moram na cabeça do Chico da Terrugem e que o Zé irá, a seu tempo e em função do que for acontecendo, actualizar com aquele caldo de cultura a que já nos habituou.
E que interesse tem isso para colocar em texto no Tu(r)bo d'Escape? Vamos a isso, vou dar as minhas razões procurando não ser redundante no que já consta em escrios anteriores; até porque temas novos, como fazer mais uma remodelação governamental exclusivamente ao nível dos "ajudantes dos ministros" (a terminologia tem o dono que se conhece), nomear para secretário de Estado um ex-administrador da SLN/BPN, ou pôr os deputados da maioria a fazer recomendações sobre a programação da RTP e o Relvas a coordenar a reestrututação da empresa que o própria queria "privatizar", não passam de pequenas manobras de diversão para "entreter o pagode" enquanto se prepara o assalto aos 4.000 milhões acordados com os "troikanos" e se faz crer que o Gaspar já pôs "os mercados" do nosso lado.
O que há de interessante na "amena cavaqueira", começa por ser o ter existido, o falar-se e procurar-se razões para o que se passa no país, abertamente, sem tabús mesmo nas questões em que o pensamento é consabidamente diferente, o que nos tempos que correm é tantas vezes evitado. É o ter existido indo lá atrás no tempo, procurando encontrar os porquês, lembrando as más experiências vividas na era "da outra senhora", recordando, até, os múltiplos casos concretos de corrupção quando não havia políticos porque a política era proibida. É o ter existido para tomar bem consciência do muito que Portugal e os portugueses fizeram ao longo destes anos de uma ainda relativamente jovem democracia, mas também do que nunca se deveria ter feito e daquilo que foi preciso arriscar para conseguir uma evolução indesmentivelmente real e que, inevitavelmente, arrastou consigo algumas outras coisas que correram menos bem ou mesmo mal. É o ter existido para debater o presente, perscrutar o futuro, o nosso apesar do horizonte já não ser largo, e o dos nossos vindouros; com respeito pelo indispensável sentido biunívoco da solidariedade intergeracional.
O mais importante, que não o mais interessante, é a conclusão, a moral da história. A convicção, resultado da observação atenta do que se passa ao nosso redor, num âmbito restrito ou num domínio alargado, de que a sociedade, como um todo, não se indigna com as atrocidades a que está sujeita, assobia para o lado quando não lhe toca directamente, deixa-se embalar na cínica hipocrisia de pôr umas classes contra as outras ou uns grupos etários contra os outros, não quer aprofundar conhecimento sobre a teoria e a prática política que a está a atabafar, que a vai empobrecer até ao limite dos limites.
Amolecidos na nossa zona de conforto, ou inertes por um desconforto entorpecedor, estamos capturados como a rã que se deixa aquietar na água morna da panela que aquece em lume brando. Se não saltarmos desta armadilha, rapidamente e num esforço de cooperação mútua, não tardará muito que sejamos irremediavelmente aniquilados pela entrada em fervor da água que nos "garantem" estar agora a chegar à temperatura ideal.
Rui Beja