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O Chico da Terrugem

Reflexões políticas com sabor a Alentejo - 4

Rui,                             

Antes de mais peço-te que me desculpes por, contrariamente ao que havíamos combinado, não te ter voltado a contactar – é que tive que regressar ao Alentejo e só hoje consegui dispor de algum tempo para te escrever. No sábado (dia 2) o Chico ligou-me: ‘Necessitamos ficar mais uns dias em Lisboa. O tempo parece que vai estar bom. Querem vir almoçar connosco ao restaurante da Boca do Inferno? Eu faço a reserva’. Concordei. Ainda pensei em desafiar-te para que tu e a Adélia se nos juntassem mas depois lembrei-me do compromisso de que me tinhas falado, e desisti.

Muita e muita gente, estacionamento difícil renhidamente disputado. Um dia muito luminoso, nada de vento, zero ondas, o céu e o mar exibindo o azul dos dias de gala. Almoço excelente, conversa de circunstância qual fase de aquecimento que antecede a entrada dos atletas na alta competição.

 

O primeiro mote fui eu quem o lançou:

- Tem sido muito badalado o facto de alguns deputados acumularem a sua atividade parlamentar com ligações a Grupos Económicos ou grandes Escritórios de Advogados que são parceiros ou importantes fornecedores de serviços ao Estado.

- E onde auferem chorudos proventos. Não era o que querias acrescentar?

- Sim, Chico. Mas o que me impressiona é que, questionados pela Comunicação Social, todos afirmem estar de consciência tranquila.

- E, obviamente, estão de consciência tranquila. Duvidas? Imagina um deputado, casado, dois filhos, um andar em Lisboa numa zona nobre da cidade, para pagar, os filhos num colégio particular, uma casa de férias no Algarve, para pagar, a mulher não trabalha, suportaria tudo isto com o magro vencimento de deputado? Claro que não! Será, possivelmente, deputado pela Guarda. O que é que ele sabe da Guarda? Que é muito fria? Que é muito alta? Provavelmente nunca lá esteve nem saberá onde fica, foi o Partido que decidiu. Mas ele é um bom chefe de família, a mulher e os filhos acima de tudo. Se calhar a ser (e ele fará tudo para o ser) indigitado para uma qualquer Comissão destinada a propor ou a ratificar a adjudicação de uma obra ou de serviços de consultoria quem irá posicionar na linha da frente? Muito naturalmente que, em caso algum, ousará arriscar, nem em pensamentos, o atual e o futuro bem-estar da sua família. Percebes agora porque todos eles afirmam estar de consciência tranquila? Claro que isto tinha uma solução muito fácil: era fazer publicar uma eficaz Lei de Incompatibilidades. O que não é possível porque a História nos ensina que não foi o bêbedo quem fez publicar a Lei Seca.

- Hoje não estás nos teus dias, Chico. Não costumas ser assim tão sarcástico.

-Ai estou, estou. Escolhi foi mal a sobremesa. Está-me a fazer inveja o teu leite-creme e eu não me estou a entender mesmo nada com este sorvete de limão com vodka, excessivamente líquido, quase nada de sorvete.

 

Terminámos o almoço. As senhoras decidiram ir investigar o recheio das pouco mais de meia dúzia de bancas de artesanato e eu e o Chico lá fomos, por insistência dele, prestar vassalagem à placa que perpetua o suicídio simulado do mago inglês Aleister Crowley em setembro de 1930. O Chico indignou-se pelo facto de o texto estar praticamente ilegível e por não existir uma tradução em inglês. Como era inevitável começámos a falar de Fernando Pessoa e veio à baila o conto ‘O Banqueiro Anarquista’.

- Banqueiros! – comentou o Chico – Os Judeus dos tempos modernos.

- E de todos os tempos. – acrescentei – Que me dizes das infelizes declarações do banqueiro Ulrich?

- Nós, os Portugueses, enquanto povo, somos uns tipos profundamente sentimentais; colocamos quase sempre em primeiro lugar o Coração e só depois a Razão. Esta nossa característica, talvez genética? Tem aspetos manifestamente positivos, por exemplo a nossa elevada propensão para a solidariedade, mas acaba por nos limitar bastante sempre que somos levados a julgar - falta-nos quase sempre a necessária objetividade. Já reparaste que, muitas vezes, até sem darmos por isso, nos ocupamos a esquartejar o mundo que nos rodeia e a colocar etiquetas em cada uma das respetivas parcelas: gosto, não gosto? E, assim que é preciso julgar, ainda antes de pormos a cabeleira e de vestirmos a toga, subimos ao armário onde guardamos os nossos catálogos para sacar o rótulo adequado, cujo descritivo irá balizar a nossa decisão final. Este comportamento identifica-se normalmente como Clubite aguda: sou do Clube A (os outros não jogam nada, limitam-se a comprar os árbitros), sou do Partido B (os outros são incompetentes e ladrões), sou Português (de Espanha nem bom vento nem bom casamento). Eu prefiro utilizar a metáfora Mensageiro e Mensagem. Nós, quase sempre, decidimos em função do Mensageiro, pouca atenção prestamos à Mensagem.

 

Permite-me que, muito rapidamente, te recorde uma página triste da História deste pobre país, a qual evidencia muito claramente o que te acabo de dizer. Em 1506 grassava em Lisboa uma terrível peste. Nesses tempos recuados havia duas possíveis terapêuticas para as pessoas se livrarem da peste: (1) os mais ricos (rei incluído) deixavam a cidade e iam espairecer para sítios arejados, (2) os restantes permaneciam na cidade e apinhavam as igrejas, rezando. Num determinado domingo de abril, durante a missa em S. Domingos, um raio de sol mais atrevido terá decidido atravessar a igreja e foi-se esborrachar no rosto de um Cristo crucificado. Uma senhora que presenciou o fenómeno ficou deslumbrada com o efeito luminoso e desatou a gritar: ‘Milagre! Milagre’. Um cristão-novo (sabes, um judeu convertido) tentou explicar-lhe que era apenas o reflexo de um raio de sol, mas a multidão que, entretanto, se tinha acotovelado à volta dos dois, ignorou a explicação e espancou-o até à morte. Durante três longos dias mais de 2.000 pessoas, homens, mulheres e crianças, foram perseguidos, torturados e queimados em fogueiras. Como vês, se o Mensageiro é herege para que é que as gentes querem saber da Mensagem?

 

Em outubro passado, se não estou em erro, o banqueiro Ulrich afirmou que os Portugueses ainda aguentavam mais Austeridade. Como o Mensageiro era herege nem sequer se ensaiou promover uma pequenina discussão sobre a hipotética validade da Mensagem. Poder-me-ás contrapor que a observação do banqueiro terá sido despropositada, que enferma de uma maior ou menor dose de hipocrisia, tudo bem. Mas perseguir o Mensageiro, queimá-lo nem que seja só em efígie na praça pública tem algum efeito prático? Faz desaparecer a peste? Não, não faz desaparecer a peste. Ao invés de se perseguir o Mensageiro porque é que não se exige aos Sábios e aos Políticos deste país que nos revelem a Verdade? Uns mandam-nos mudar de ares (emigrar), outros mandam-nos rezar e queimar hereges. Há uma solução para nos livrarmos da peste? Há várias soluções? Quais são? Se não as há, então é infelizmente verdade que estamos condenados a aguentar mais, e mais, e mais, sabe-se lá até quando.

Três meses depois, já neste mês de fevereiro, o banqueiro voltou a insistir que o país ainda aguenta mais Austeridade. Mais uma vez, lá caiu o Carmo e a Trindade! Nestes últimos três meses a situação melhorou, ou antes piorou? Claro que piorou. E as pessoas continuam a aguentar. Conheces, porventura, as mais recentes sondagens? Quantos Portugueses continuam a apostar no Governo? Uns 40%? Se alguém perguntasse a estes Portugueses se ainda aguentam, que responderiam eles? Ontem, amplamente publicitada pelas chamadas Redes Sociais, teve lugar, em várias cidades deste pobre país, uma manifestação de Indignados. Quantos Indignados deram a cara? Uma meia dúzia. E os que ficaram em casa? Ainda não estarão Indignados? Continuam a concordar com as políticas do Governo? Parece-me que sim, de contrário teriam incorporado as manifestações.

 

Confesso-te que tudo isto me preocupa muito seriamente. Enquanto os senhores que mandam na política, independentemente da Ideologia ou do Partido, não se convencerem que eles, enquanto Corporação, são moralmente responsáveis pelo destino de milhões de pessoas, e que não foram eleitos para passarem o mandato a papaguear sound bytes ou vomitar insultos recíprocos com o propósito único de fazerem manchete nos telejornais das 8, mas sim para honestamente, serenamente, com elevado sentido ético e profissional, se esforçarem por descortinar, propor, aprovar e pôr em pratica as mais adequadas soluções que visem melhorar a vida dos cidadãos que os elegeram, bem como das suas famílias e de seus descendentes, enquanto isso não acontecer estamos positivamente tramados. Afirmava Churchill que um político só se converte num estadista quando começa a pensar nas próximas gerações e não nas próximas eleições. 

O discurso vai longo, noto-te enfadado, mas responde-me, peço-te, analisando friamente os dados disponíveis, esquecendo por breves momentos a identidade do Mensageiro, e atendendo tão somente à Mensagem, até quando será humanamente suportável este sufoco? Não haverá por aí um qualquer discípulo esquecido do dr. Ricardo Jorge, com disponibilidade e talento para nos livrar de vez desta insuportável pandemia a que se convencionou chamar Austeridade?

- O. K. Chico. Mas tu, no seguimento de todas essas tuas análises, de todas essas tuas críticas, porque é que não experimentas produzir doutrina, apontar caminhos?

- Meu caro, eu não passo de um mero espetador, um espetador que se limita a observar e a comentar, que se esforça por ser imparcial, que utiliza a Razão e não o Coração. Não mais do que isso. Trabalhar, só trabalhei uma vez na vida, foi em Londres, numa loja do Piccadilly, a aviar doses de shish kebab.  Mas então tinha 25 anos e estava apaixonado.

No que diz respeito à matança de 1506 foi erguido no largo de S. Domingos, em abril de 2008, portanto mais de 500 anos depois, um monumento de homenagem às vítimas.

Daqui a uns 100 anos, ao cimo da escadaria que conduz ao edifício onde hoje funciona a Assembleia da República, o então Presidente da Autarquia, numa cerimónia singela mas prenhe de significado histórico, procederá à inauguração de um pequeno monumento que constará de um pedestal com mais ou menos 1 metro e meio de altura sobre o qual, num cenário em ruinas, duas estátuas representando um casal sem-abrigo partilham o que resta de um pão. Uma placa comemorativa assinalará a efeméride: ‘Em memória dos Portugueses de há 100 anos que, ingenuamente, confiaram nas palavras do Sr. Presidente do Conselho de Administração da Assembleia da República, Sr. Eng. Couto dos Santos, que afirmou a um jornal que os Portugueses deveriam ter confiança nos deputados que elegeram, pois estes eram responsáveis pelos seus atos. Os Portugueses, ingenuamente, confiaram’.

 

Sabes o que me apetecia fazer agora? Pois era ir até aos Jerónimos cumprir um ritual que já não cumpro há algum tempo, e que consiste em contemplar, deslumbrado, a extraordinária filigrana em pedra que é o Portal Sul, ao mesmo tempo que rogava ao Anjo de Portugal, que tudo vigia lá do alto, que nos conceda o milagre de reajustar uns tantos fusíveis nas mentes dos nossos políticos por forma a que estes passem a conjugar o verbo governar como verbo transitivo que é, eu governo as finanças, tu governas a economia, ele governa a autarquia, em vez de o continuarem a conjugar como verbo reflexivo que de todo não é, eu governo-me, tu governas-te, ele governa-se. Depois iria até aos Claustros, que percorreria com muito vagar, saboreando religiosamente o exoterismo de cada um dos medalhões. Mas não. Uma das paredes da sala de estar da nossa casa aqui de Lisboa apresenta uma manchas de humidade e a Rita de Cássia decidiu aproveitar as pequenas obras que temos que mandar fazer para efetuar algumas modificações na decoração, tais como pintar a sala de uma outra cor, mudar os cortinados, reformar uma parte da mobília. Por isso marcou uma reunião hoje à tarde, lá em casa, às 5, com um sobrinho, casado com uma sobrinha, e que é arquiteto de interiores. Pessoa escreveu na Mensagem: ‘Cumpriu-se o Mar… falta cumprir Portugal’. Eu diria: ‘Cumpriu-se a vontade da Rita de Cássia… a minha ficou em águas de bacalhau’. Que queres? Mulheres! 

  

Com um forte abraço do

               Zé

                                                                                   Vila Viçosa,11 de fevereiro de 2013.

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publicado às 17:21

Sem-abrigo

31.01.13

Procura-se

Fernando Ulrich, presidente do BPI e 'candidato a sem-abrigo'... porque aguenta. Ai aguenta, aguenta!

 

 

Conforme Expresso Online, em 31 de Janeiro de 2013, às 14:30:

Depois de ter defendido em outubro do ano passado que o país aguentava mais austeridade, o presidente do BPI voltou ontem ao tema com um novo argumento: Se os sem-abrigo aguentam porque é que nós não aguentamos?

"Se os gregos aguentam uma queda do PIB (Produto Interno Bruto) de 25% os portugueses não aguentariam porquê? Somo todos iguais, ou não?", questionou-se Fernando Ulrich durante uma conferência de imprensa de apresentação de resultados do BPI, em Lisboa.

"Se você andar aí na rua e infelizmente encontramos pessoas que são sem-abrigo, isso não lhe pode acontecer a si ou a mim porquê? Isso também nos pode acontecer", acrescentou durante o encontro com os jornalistas.

"E se aquelas pessoas que nós vemos ali na rua, naquela situação e sofrer tanto aguentam porque é que nós não aguentamos? Parece-me uma coisa absolutamente evidente", rematou o banqueiro.

Ler mais: http://expresso.sapo.pt/ulrich-se-os-sem-abrigo-aguentam-porque-e-que-nos-nao-aguentamos=f783682#ixzz2JamwsGRG

Rui Beja

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publicado às 21:48


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José Cardoso Pires escreveu, em adenda de Outubro de 1979 ao seu «Dinossauro Excelentíssimo»: "Mas há desmemória e mentira a larvar por entre nós e forças interessadas em desdizer a terrível experiência do passado, transformando-a numa calúnia ou em algo já obscuro e improvável. É por isso e só por isso que retomei o Dinossauro Excelentíssimo e o registo como uma descrição incómoda de qualquer coisa que oxalá se nos vá tornando cada vez mais fabular e delirante." Desafortunadamente, a premunição e os receios de José Cardoso Pires confirmam-se a cada dia que passa. Tendo como génese os valores do socialismo democrático e da social democracia europeia, este Blog tem como objectivo, sem pretensão de ser exaustivo, alertar, com o desejável rigor ético, para teorias e práticas que visem conduzir ao indesejável retrocesso civilizacional da sociedade portuguesa.

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