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Da não-inscrição à violência
Oportuno alerta do filósofo José Gil, em artigo de opinião publicado na Visão de 14 de Março de 2013
Intelectual do maior prestígio nacional e internacional, o filósofo, ensaísta e pensador analisa criticamente a atitude do poder instalado face à manifestação de 2 de Março e fundamenta o receio de que "fazer como se nada tivesse acontecido" e, consequentemente, esquecer que "a não-inscrição forçada de uma acção que visa precisamente inscrever-se viola violentamente a democracia", origina "outros tipos de expressão e de protesto". Termina concluindo: "Da violência sofrida brota, em geral, violência - quem poderá garantir que destas forças soltas a violência nua não jorrará?". Vale a pena que os senhores que nos (des)governam pensem nestas palavas sábias e tomem consciência que sendo o país constituío por pessoas, o comportamento humano não se rege pelas regras dos números e das estatísticas.
Como se sabe, um dos meios que o Governo adotou para reduzir a zero as manifestações hostis é não lhes responder. Fazer como se nada tivesse acontecido é fazer não acontecer. Foi o que tentou o Governo com a manifestação de 2 de março. Mas é possível que desta vez, os seus cálculos lhe saiam errados.
Anular uma manifestação é impedir a sua inscrição no real. A não-inscrição forçada de uma ação que visa precisamente inscrever-se viola violentamente a democracia. Que significa «inscrever»? Produzir o real, abrindo possibilidades novas à existência. A não-inscrição da vida portuguesa atira os indivíduos para um limbo pantanoso em forma de duplo impasse. Como aqueles casais que se separam mas ficam ligados afetivamente, voltando esporadicamente a comportamentos de casados, depois de separados, e assim indefenidamente. Não conseguem inscrever a separação no real. Separação interminável porque não inscrita - o imaginário mistura-se com a realidade criando um caos pastoso, aonde, afinal, nada aconteceu. Será necessário um terceiro termo (um ato jurídico, por exemplo que decida da guarda dos filhos) para que a separação se inscreva desfazendo o limbo da não-separação imaginária.
Com a irrupção da troika e da austeridade brutal começou a aparecer o real no espírito dos portugueses quebrando o laço «simbiótico» povo-Governo. Mas surgiu da pior maneira. Primeiro, violentamente: dando ao real a figura do vazio, da anulação, da exclusão. Segundo, perversamente: ao mesmo tempo que, transformando os espíritos, os levava à exigência de se inscrever (ter um emprego, um salário justo, tomar iniciativas criar possíveis no presente e no futuro), retirava-lhes as condições dessa inscrição (empobrecendo-os, humilhando-os, roubando-lhes o trabalho, o espaço, o tempo e as forças). Uma mudança radical parece começar assim na cultura da não-inscrição, forçando o português a abortar o seu próprio processo de transformação. Um outro duplo impasse se está edificando sobre as ruínas do antigo.
COMPREENDE-SE ASSIM A NATUREZA da manifestação de 2 de março. Os portugueses estão num processo de mudança de mentalidade. O limbo está a desaparecer e a violência da situação que lhes impõem inaugura talvez um novo modo de expressão das suas forças. Processo que vai do queixume, do masoquismo e da suave paranoia dos seus gozos (não-inscrição) - voltando contra si mesmo a violência inconsciente -, à exteriorização, ação, criação que tenta abrir caminho no real (inscrição). Fases que marcam uma relação específica à violência: 1.ª) fuga à violência - autoflagelação, interiorização de violência; 2.ª) descoberta da violência real da vida nula, da necessidade de inscrição e da sua impossibilidade brutal; 3.ª) exteriorização das forças - uma outra política ou a violência real contra o real violento?
EM 2 DE MARÇO OS PORTUGUESES mostraram situar-se na segunda fase: desorientação, confusão, sideração - abandonaram o queixume, mas não sabem ainda como protestar. Daí o silêncio. E a ausência de apatia (porque vieram). Daí a coexistência de múltiplos grupos heterogéneos, de indivíduos solitários e mudos. Todos se aceitavam na sua igualdade nua. Desinvestiram em símbolos políticos, palavras de ordem mais ou menos codificadas. Bastava estarem lá, afirmando-se pela sua presença contra quem os anula e quer fazer desaparecer. Mudez contida que esconde forças desinvestidas, soltas, não codificadas e não canalizadas por ideologias e partidos. Da violência sofrida brota, em geral, violência - quem poderá garantir que destas forças soltas a violência nua não jorrará?
Rui Beja
O direito à indignação
José Carlos de Vasconcelos defende o direito à manifestação popular legítima e sem violência, de protesto perante a irracionalidade das fracassadas medidas de austeridade impostas pela troika e zelosamente cumpridas ou até ultrapassadas pelo Governo, na Visão de 28 de Fevereiro de 2013
Homem de cultura, poeta, jornalista, jurista, e director do Jornal de Letras, José Carlos de Vasconcelos acompanha e participa na actividade política desde os tempos em que foi dirigente da Associação Académica de Coimbra. Intransigente defensor do regime democrático, foi advogado de personalidades julgadas pelo Tribunal Plenário durante o período do Estado Novo e, depois da instauração da democracia, deputado pelo PRD - Partido Renovador Democrático. Como jornalista e analista político, mantém a linha de pensamento que o notabilizou na defesa das liberdades, direitos e garantias que caracterizam os regimes democráticos.
A crónica que aqui transcrevo é bem representativa do pensamento do seu autor, por quem nutro a muita consideração e estima consolidadas numa forte relação profissional e pessoal vivida, ao longo dos anos, no mundo dos livros.
E obviamente porque partilho a defesa do inalianável direito à indignação e à sua expressão pública sem violência e com civismo.
Quem avalia a troika?, apetece perguntar agora que os troikanos voltaram para a avaliação que se diz ser a mais importante. Até agora, eles sempre deixaram elogios aos indígenas, como tinha de ser, porque estes sempre cumpriram religiosamente as suas ordens. Ou mesmo as ultrapassaram, na ortodoxia das receitas, nos excessos da «austeridade», na irracional imposição de medidas tão tremendamente nocivas como injustas, no desprezo pelas críticas e pelos alertas para a situação a que com elas seríamos conduzidos e na qual de facto nos encontramos.
É evidente que este Governo tinha uma missão muito difícil e poderia não atingir os objectivos desejados. Mas não se trata apenas de não os atingir,de falhar todas as previsões, de errar e errar com arrogância - trata-se, sim, de estarmos cada vez pior e mais longe deles. Enfim, o Governo foi forçado a reconhecer uma pequena parte do seu monumental falhanço e diz que vai pedir mais um ano de prazo para os novos cortes. Não chega: tem de haver uma renegociação da dívida, que passa por prazos maiores mas também por juros menores; e tem de haver novas políticas. Ainda há dias Paul Krugman uma vez mais condenava a irracionalidade destas políticas de austeridade (quanto mais severa pior a recessão...), que fazem os seus defensores parecerem cada vez mais «insolentes e delirantes».
A avaliação do Goveno pela troika não significa nada, pois não passa de uma espécie de juízo em causa própria. E a avaliação da troika, como a do Governo, só pode ser feita através dos resultados, que são muito maus, e pelos portugueses. Em eleições, quando as houver; e antes delas, através das outras formas que a democracia propicia, entre as quais as manifestações de rua. Como foi a de 15 de Setembro de 2012, um autêntico «marco» a assinalar o pensar e o sentir do País, nesta emergência nacional, e como será a do próximo sábado.
ENTRETANTO, O POVO TEM direito àindignação - e a exprimi-la. Sem violência, com civismo. O direito à indignação e o direito à esperança são dois direitos fundamentais. Direitos que em certas circunstâncias a cidadania transforma também em deveres. Assim, creio ser legítimo, natural, que a indignação se manifeste quando está presente um membro do Governo, sobretudo se for dos mais contestados. Cantar, então, a Grândola, representa uma bela forma do exercício simultâneo do direito à indignação, pelo protesto que cantá-la nessas condições significa, e do direito à esperança, pelo símbolo virado para o futuro que a cantiga do José Afonso continua a ser.
Constituirá, no entanto, um atentado à liberdade de expresão fazê-lo em termos de levar um membro do Governo a ser ou a sentir-se impedido de usar da palavra numa intervenção pública? A questão pôs-se a propósito de dois episódios com Miguel Relvas e não fujo a ela: a minha resposta é, quanto a esses episódios, negativa, por várias razões que aqui não cabem. Embora julgue ser mais curial que, dado o recado e transmitida a mensagem que com o cantar a Grândola se visa, não prolongar a contestação. Mais do que considerar que tais manifestações limitam a liberdade de expresão dos governantes - o que chega a ser um pouco caricato, dado estarem eles sempre a «exprimir-se» e em geral antes de falarem já se saber até o que vão dizer -, deve-se considerá-las exercício da liberdade de expressão por parte de quem só nessas ocasiões, e só para protestar, tem acesso aos media.
IMPÕE-SE, PORÉM, DISTINGUIR situações, intervenções e até membros do Governo - a generalidade deles da troika interna - Passos, Gaspar e Relvas. Em particular este, cuja continuação no Executivo revela, da parte do primeiro-ministro e da sua, pelos motivos que se conhecem, um lamentável desrespeito pela vontade dos portugueses, se não constitui mesmo uma afronta. Por isso, porque a sua presença no Governo é percecionada por muitos como uma espécie de «provocação», e como após uma fase em que teve a sensatez de não aparecer agora se exibe em vários palcos, os protestos são e decerto serão cada vez mais veementes - com a compreensão, ou mesmo aplauso, julgo eu, da imensa maioria dos portugueses...
Rui Beja
APRe! na manifestação de 2 de Março de 2013
Porque sendo o Estado Social um dos pilares da nossa Constituição, o mesmo não pode ser posto em causa enquanto a mesma vigorar