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Os velhos: não é possível exterminá-los?

Artigo e fotografia de José Pacheco Pereira, historiador, no Público Online de 30 de Novembro de 2013

 

 

Com o prestígio intelectual que lhe é amplamente reconhecido, e o desassombro pessoal que o caracteriza, o social-democrata Pacheco Pereira, que tem vindo a denunciar insistentemente a incompetência e a agenda ultraneoliberal do governo de Passos Coelho, reafirma de modo frontal e fundamentado a sua discordância com as práticas que estão a ser seguidas;  incidindo especialmente no ataque que está a ser feito à condição de ser mais velho.

Subscrevo por inteiro as palavras de Pacheco Pereira. Estamos perante um genocídio administrativo, merecedor de veemente repúdio e de todas as consequências sociais legalmente aplicáveis a um acto desta natureza.

  

Eu gostaria muito de escrever artigos racionais, ponderados, que merecessem uma aura académica e sensata, que unissem em vez de dividir, que me permitissem ter a minha quota de lugares, prémios e prebendas, mas estou condenado, nestes tempos, a escrever cada vez mais panfletos. Acontece. Isto do imperativo categórico, como Kant sabia, é uma maçada.

 

Isso deve-se ao facto de não querer ter nenhuma falinha mansa, daquelas que enchem o balofo da nossa política de mútuos cumprimentos e salamaleques, com gente que se mostra impiedosa por indiferença, hostil com os fracos que estão do lado errado da “economia”, subserviente com os fortes, capaz de usar todos os argumentos para dividir, se daí vier alguma pequena folga para as suas costas.

 

Tenho dito e vou repetir: a herança que estes dois anos de “Governo” Passos Coelho-Portas-troika vai deixar ultrapassará muito o seu tempo de vida como governantes. Se não for antes, em 2015, passarão à história como um epifenómeno dos tempos da crise e sobreviverão incrustados nos partidos de onde lhes vem o poder, como um fungo que não se consegue limpar. Vão continuar a estragar muita coisa, mas a própria lógica de onde vieram os substituirá por outros mais ou menos maus. A maldição portuguesa é esta. Aquilo que mais precisamos, não temos.

 

Mas, mesmo que desapareçam como as figuras menores que realmente são, vão deixar estragos muito profundos no tecido já de si muito frágil da nossa vida colectiva, cavando fundo divisões e conflitos, destruindo o pouco de humanidade social que algum bem-estar tinha permitido. Eles estão, como as tropas romanas, a fazer no seu Cartago, infelizmente no nosso Portugal, o terreno salgado e estéril. Pode-se-lhes perdoar tudo, os erros de política, a incompetência, o amiguismo, uma parte da corrupção dos grandes e dos médios, menos isto, este salgar da terra que pisamos, apenas para obter uns ganhos pequeninos no presente e com o custo de enormes estragos no futuro.

 

Um exemplo avulta nos últimos dias, que já vem de trás, mas que ganha uma nova dimensão: o ataque aos velhos por serem velhos, uma irritação com o facto de haver tanta gente que permanece como um ónus para o erário público apesar de já não ser “produtiva”, de não ter saída no “mercado do trabalho”, de estar “gasta”. De ministros que não leram Camões e nem sequer sabem quem são os “velhos do Restelo”, a gente que pulula nesse novo contínuo dos partidos e do Estado que são os blogues, a umas agências de comunicação que são as Tecnoforma dos dias de hoje, boys e empregados de todos os poderes para fazerem na Internet e nos jornais o sale boulot, todos, de uma maneira ou de outra, atacam os velhos, por serem velhos. Numa sociedade envelhecida, isso significa atacar a maioria dos portugueses, em nome de uma ideia de juventude “empreendedora”, capaz de fazer uma empresa do nada só com “ideias”, “inovação” e design, sem os vícios do “passado”, capaz de singrar na vida sem “direitos adquiridos”, nem solidariedade social, imagem que tem o pequeno problema de ser tão mitológica como a Fada dos Dentinhos.

 

Grande parte do ataque a Mário Soares e a muitos que estiveram na Aula Magna foi feito em nome de eles serem “velhos”, logo senis. Nem sequer é por implicação, é dito com clareza, com o mesmo tipo de “argumentos” com que os soviéticos enviavam os dissidentes para os asilos psiquiátricos porque quem estivesse no uso normal das suas faculdades não podia deixar de ser comunista. Aqui é o mesmo: só pode ser senil quem duvidar da bondade das medidas do Governo, apresentadas como sendo a realidade pura, inescapável, inevitável. Como pode estar bom da cabeça quem coloca em causa a versão em “economês” da lei da gravidade? Só um louco. E se for velho, é-se senil, ultrapassado, antiquado, mesquinho, por definição. Não há outra maneira de explicar que haja velhos com tantas ideias “erradas” sobre a bondade do nosso “ajustamento” e que sejam empecilhos para os “jovens” brilhantes que o aplicam com vigor e sem vergonha.

 

Muito do discurso contra os velhos, que começa, em bom rigor, cada vez mais cedo, quando se perde o emprego e se fica “gasto” para o mercado de trabalho, é um discurso que pretende ser utilitário no plano político, e é isso que o torna moralmente desprezível. Destina-se a justificar o violento ataque a reformas e pensões, a gente que trabalhou a vida toda, e que ainda tem memória do que custou obter esses malfadados “direitos”, resultado de “contratos” de “confiança” com o estado, tudo coisas de velhos que estão a “roubar” aos mais novos do seu futuro. Estão a mais. E se eles não percebem que estão a mais a gente vai mostrar-lhes pelo vilipêndio e pelo saque que já há muito deveriam ter desaparecido.

 

Muita coisa tem hoje a ver com esta demonização da idade. Um caso entre muitos, é o que se está a passar com o despedimento colectivo dos trabalhadores dos Estaleiros de Viana do Castelo. Nem sequer discuto se a empresa tinha que encerrar ou não, porque a partir de um certo nível de dolo e degradação da linguagem esse não é o primeiro problema. Podia ser, mas com esta gente não é, porque, ao fazerem as coisas como fazem, sempre obcecados em enganar-nos, merecem que contra eles se volte tudo, o discurso empolgado dos “navegadores” e a retórica do “mar”, ao mesmo tempo que se fecha o único estaleiro que sobrava, a disparidade de não querer pagar 180 milhões de euros, enquanto se aumenta a taxa para a RTP, que recebe todos os anos muito mais do que isso, a displicência com que se apresenta como grande vitória, mais de 600 despedimentos.

 

Acresce a soma de mentiras habituais: que 400 trabalhadores vão ser reintegrados (afinal não há nenhuma garantia), que vão ser pagas as devidas indemnizações (afinal parece que só a parte deles), que vai continuar a construção naval (quando não custa perceber que o que a Martifer vai fazer não são navios). O que vai acontecer é um enorme despedimento colectivo feito pelo Estado, o encerramento dos estaleiros à construção naval, o preço de saldo para a Martifer após o Estado, como no BPN, pagar todos os custos. E, na vaguíssima hipótese de alguns trabalhadores serem empregados na nova empresa, serão sempre poucos, com salários mais baixos, com uma folha de antiguidade a zero, e ficarão de fora os mais velhos e os mais reivindicativos. Alguém vai contratar um membro da comissão de trabalhadores, mesmo que seja um excelente soldador? Como muita da mão-de-obra dos estaleiros já tem uma certa idade – os velhos começam a ser velhos aos quarenta –, está-se mesmo a ver a sua “empregabilidade”.

 

Não custa fazer o discurso politicamente correcto de que a “esquerda não tem o monopólio da sensibilidade social” (e não tem), nem dizer aqueles rodriguinhos do costume do género “que bem sabemos como os portugueses estão a sofrer”, ou que “nenhum Governo gosta de tomar estas medidas”, ou elogiar os portugueses pelo seu papel “decisivo” no sucesso da aplicação do “ajustamento”, etc., etc. Na verdade, estou farto de exibições de confrangimento público e exercícios de “preocupação social”, já não posso ver a hipocrisia de Passos Coelho e de Aguiar Branco, ao lado do exibicionismo pavoneado dos soundbites de Portas.

 

Swift escreveu em 1729 uma sátira sobre a pobreza na Irlanda chamada Uma modesta proposta para evitar que as crianças dos pobres irlandeses sejam um fardo para os seus pais e o seu país e para as tornar um benefício público. Aconselhava os pobres a comerem os filhos, como meio de combater a fome, “grelhados, fritos, cozidos, guisados ou fervidos”. Na verdade, quando se assiste a este ataque à condição de se ser mais velho – um aborrecimento porque exige pagar reformas e pensões, faz uma pressão indevida sobre o sistema nacional de saúde, e, ainda por cima, protestam e são irreverentes –, podia avançar-se para uma solução mais simples. Para além de os insultar, de lhes retirar rendimentos, de lhes dificultar tudo, desde a obrigação de andar de repartição em repartição em filas para obter papéis que lhes permitam evitar pagar rendas de casa exorbitantes, até ao preço dos medicamentos, para além de lhes estarem a dizer todos os dias que ocupam um espaço indevido nesta sociedade, impedindo os mais jovens de singrarem na maravilhosa economia dos “empreendedores” e da “inovação”, será que não seria possível ir um pouco mais longe e “ajustá-los”, ou seja, exterminá-los?

 

Rui Beja

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publicado às 22:57

O direito à indignação

José Carlos de Vasconcelos defende o direito à manifestação popular legítima e sem violência, de protesto perante a irracionalidade das fracassadas medidas de austeridade impostas pela troika e zelosamente cumpridas ou até ultrapassadas pelo Governo, na Visão de 28 de Fevereiro de 2013

 

Homem de cultura, poeta, jornalista, jurista, e director do Jornal de Letras, José Carlos de Vasconcelos acompanha e participa na actividade política desde os tempos em que foi dirigente da Associação Académica de Coimbra. Intransigente defensor do regime democrático, foi advogado de personalidades julgadas pelo Tribunal Plenário durante o período do Estado Novo e, depois da instauração da democracia, deputado pelo PRD - Partido Renovador Democrático. Como jornalista e analista político, mantém a linha de pensamento que o notabilizou na defesa das liberdades, direitos e garantias que caracterizam os regimes democráticos.

A crónica que aqui transcrevo é bem representativa do pensamento do seu autor, por quem nutro a muita consideração e estima consolidadas numa forte relação profissional e pessoal vivida, ao longo dos anos, no mundo dos livros.

E obviamente porque partilho a defesa do inalianável direito à indignação e à sua expressão pública sem violência e com civismo.

 

Quem avalia a troika?, apetece perguntar agora que os troikanos voltaram para a avaliação que se diz ser a mais importante. Até agora, eles sempre deixaram elogios aos indígenas, como tinha de ser, porque estes sempre cumpriram religiosamente as suas ordens. Ou mesmo as ultrapassaram, na ortodoxia das receitas, nos excessos da «austeridade», na irracional imposição de medidas tão tremendamente nocivas como injustas, no desprezo pelas críticas e pelos alertas para a situação a que com elas seríamos conduzidos e na qual de facto nos encontramos.

  É evidente que este Governo tinha uma missão muito difícil e poderia não atingir os objectivos desejados. Mas não se trata apenas de não os atingir,de falhar todas as previsões, de errar e errar com arrogância - trata-se, sim, de estarmos cada vez pior e mais longe deles. Enfim, o Governo foi forçado a reconhecer uma pequena parte do seu monumental falhanço e diz que vai pedir mais um ano de prazo para os novos cortes. Não chega: tem de haver uma renegociação da dívida, que passa por prazos maiores mas também por juros menores; e tem de haver novas políticas. Ainda há dias Paul Krugman uma vez mais condenava a irracionalidade destas políticas de austeridade (quanto mais severa pior a recessão...), que fazem os seus defensores parecerem cada vez mais «insolentes e delirantes».

  A avaliação do Goveno pela troika não significa nada, pois não passa de uma espécie de juízo em causa própria. E a avaliação da troika, como a do Governo, só pode ser feita através dos resultados, que são muito maus, e pelos portugueses. Em eleições, quando as houver; e antes delas, através das outras formas que a democracia propicia, entre as quais as manifestações de rua. Como foi a de 15 de Setembro de 2012, um autêntico «marco» a assinalar o pensar e o sentir do País, nesta emergência nacional, e como será a do próximo sábado.

 

ENTRETANTO, O POVO TEM direito àindignação - e a exprimi-la. Sem violência, com civismo. O direito à indignação e o direito à esperança são dois direitos fundamentais. Direitos que em certas circunstâncias a cidadania transforma também em deveres. Assim, creio ser legítimo, natural, que a indignação se manifeste quando está presente um membro do Governo, sobretudo se for dos mais contestados. Cantar, então, a Grândola, representa uma bela forma do exercício simultâneo do direito à indignação, pelo protesto que cantá-la nessas condições significa, e do direito à esperança, pelo símbolo virado para o futuro que a cantiga do José Afonso continua a ser.

  Constituirá, no entanto, um atentado à liberdade de expresão fazê-lo em termos de levar um membro do Governo a ser ou a sentir-se impedido de usar da palavra numa intervenção pública? A questão pôs-se a propósito de dois episódios com Miguel Relvas e não fujo a ela: a minha resposta é, quanto a esses episódios, negativa, por várias razões que aqui não cabem. Embora julgue ser mais curial que, dado o recado e transmitida a mensagem que com o cantar a Grândola se visa, não prolongar a contestação. Mais do que considerar que tais manifestações limitam a liberdade de expresão dos governantes - o que chega a ser um pouco caricato, dado estarem eles sempre a «exprimir-se» e em geral antes de falarem já se saber até o que vão dizer -, deve-se considerá-las exercício da liberdade de expressão por parte de quem só nessas ocasiões, e só para protestar, tem acesso aos media.

 

IMPÕE-SE, PORÉM, DISTINGUIR situações, intervenções e até membros do Governo - a generalidade deles da troika interna - Passos, Gaspar e Relvas. Em particular este, cuja continuação no Executivo revela, da parte do primeiro-ministro e da sua, pelos motivos que se conhecem, um lamentável desrespeito pela vontade dos portugueses, se não constitui mesmo uma afronta. Por isso, porque a sua presença no Governo é percecionada por muitos como uma espécie de «provocação», e como após uma fase em que teve a sensatez de não aparecer agora se exibe em vários palcos, os protestos são e decerto serão cada vez mais veementes - com a compreensão, ou mesmo aplauso, julgo eu, da imensa maioria dos portugueses...

Rui Beja

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publicado às 18:05

O Chico da Terrugem

Reflexões políticas com sabor a Alentejo - 4

Rui,                             

Antes de mais peço-te que me desculpes por, contrariamente ao que havíamos combinado, não te ter voltado a contactar – é que tive que regressar ao Alentejo e só hoje consegui dispor de algum tempo para te escrever. No sábado (dia 2) o Chico ligou-me: ‘Necessitamos ficar mais uns dias em Lisboa. O tempo parece que vai estar bom. Querem vir almoçar connosco ao restaurante da Boca do Inferno? Eu faço a reserva’. Concordei. Ainda pensei em desafiar-te para que tu e a Adélia se nos juntassem mas depois lembrei-me do compromisso de que me tinhas falado, e desisti.

Muita e muita gente, estacionamento difícil renhidamente disputado. Um dia muito luminoso, nada de vento, zero ondas, o céu e o mar exibindo o azul dos dias de gala. Almoço excelente, conversa de circunstância qual fase de aquecimento que antecede a entrada dos atletas na alta competição.

 

O primeiro mote fui eu quem o lançou:

- Tem sido muito badalado o facto de alguns deputados acumularem a sua atividade parlamentar com ligações a Grupos Económicos ou grandes Escritórios de Advogados que são parceiros ou importantes fornecedores de serviços ao Estado.

- E onde auferem chorudos proventos. Não era o que querias acrescentar?

- Sim, Chico. Mas o que me impressiona é que, questionados pela Comunicação Social, todos afirmem estar de consciência tranquila.

- E, obviamente, estão de consciência tranquila. Duvidas? Imagina um deputado, casado, dois filhos, um andar em Lisboa numa zona nobre da cidade, para pagar, os filhos num colégio particular, uma casa de férias no Algarve, para pagar, a mulher não trabalha, suportaria tudo isto com o magro vencimento de deputado? Claro que não! Será, possivelmente, deputado pela Guarda. O que é que ele sabe da Guarda? Que é muito fria? Que é muito alta? Provavelmente nunca lá esteve nem saberá onde fica, foi o Partido que decidiu. Mas ele é um bom chefe de família, a mulher e os filhos acima de tudo. Se calhar a ser (e ele fará tudo para o ser) indigitado para uma qualquer Comissão destinada a propor ou a ratificar a adjudicação de uma obra ou de serviços de consultoria quem irá posicionar na linha da frente? Muito naturalmente que, em caso algum, ousará arriscar, nem em pensamentos, o atual e o futuro bem-estar da sua família. Percebes agora porque todos eles afirmam estar de consciência tranquila? Claro que isto tinha uma solução muito fácil: era fazer publicar uma eficaz Lei de Incompatibilidades. O que não é possível porque a História nos ensina que não foi o bêbedo quem fez publicar a Lei Seca.

- Hoje não estás nos teus dias, Chico. Não costumas ser assim tão sarcástico.

-Ai estou, estou. Escolhi foi mal a sobremesa. Está-me a fazer inveja o teu leite-creme e eu não me estou a entender mesmo nada com este sorvete de limão com vodka, excessivamente líquido, quase nada de sorvete.

 

Terminámos o almoço. As senhoras decidiram ir investigar o recheio das pouco mais de meia dúzia de bancas de artesanato e eu e o Chico lá fomos, por insistência dele, prestar vassalagem à placa que perpetua o suicídio simulado do mago inglês Aleister Crowley em setembro de 1930. O Chico indignou-se pelo facto de o texto estar praticamente ilegível e por não existir uma tradução em inglês. Como era inevitável começámos a falar de Fernando Pessoa e veio à baila o conto ‘O Banqueiro Anarquista’.

- Banqueiros! – comentou o Chico – Os Judeus dos tempos modernos.

- E de todos os tempos. – acrescentei – Que me dizes das infelizes declarações do banqueiro Ulrich?

- Nós, os Portugueses, enquanto povo, somos uns tipos profundamente sentimentais; colocamos quase sempre em primeiro lugar o Coração e só depois a Razão. Esta nossa característica, talvez genética? Tem aspetos manifestamente positivos, por exemplo a nossa elevada propensão para a solidariedade, mas acaba por nos limitar bastante sempre que somos levados a julgar - falta-nos quase sempre a necessária objetividade. Já reparaste que, muitas vezes, até sem darmos por isso, nos ocupamos a esquartejar o mundo que nos rodeia e a colocar etiquetas em cada uma das respetivas parcelas: gosto, não gosto? E, assim que é preciso julgar, ainda antes de pormos a cabeleira e de vestirmos a toga, subimos ao armário onde guardamos os nossos catálogos para sacar o rótulo adequado, cujo descritivo irá balizar a nossa decisão final. Este comportamento identifica-se normalmente como Clubite aguda: sou do Clube A (os outros não jogam nada, limitam-se a comprar os árbitros), sou do Partido B (os outros são incompetentes e ladrões), sou Português (de Espanha nem bom vento nem bom casamento). Eu prefiro utilizar a metáfora Mensageiro e Mensagem. Nós, quase sempre, decidimos em função do Mensageiro, pouca atenção prestamos à Mensagem.

 

Permite-me que, muito rapidamente, te recorde uma página triste da História deste pobre país, a qual evidencia muito claramente o que te acabo de dizer. Em 1506 grassava em Lisboa uma terrível peste. Nesses tempos recuados havia duas possíveis terapêuticas para as pessoas se livrarem da peste: (1) os mais ricos (rei incluído) deixavam a cidade e iam espairecer para sítios arejados, (2) os restantes permaneciam na cidade e apinhavam as igrejas, rezando. Num determinado domingo de abril, durante a missa em S. Domingos, um raio de sol mais atrevido terá decidido atravessar a igreja e foi-se esborrachar no rosto de um Cristo crucificado. Uma senhora que presenciou o fenómeno ficou deslumbrada com o efeito luminoso e desatou a gritar: ‘Milagre! Milagre’. Um cristão-novo (sabes, um judeu convertido) tentou explicar-lhe que era apenas o reflexo de um raio de sol, mas a multidão que, entretanto, se tinha acotovelado à volta dos dois, ignorou a explicação e espancou-o até à morte. Durante três longos dias mais de 2.000 pessoas, homens, mulheres e crianças, foram perseguidos, torturados e queimados em fogueiras. Como vês, se o Mensageiro é herege para que é que as gentes querem saber da Mensagem?

 

Em outubro passado, se não estou em erro, o banqueiro Ulrich afirmou que os Portugueses ainda aguentavam mais Austeridade. Como o Mensageiro era herege nem sequer se ensaiou promover uma pequenina discussão sobre a hipotética validade da Mensagem. Poder-me-ás contrapor que a observação do banqueiro terá sido despropositada, que enferma de uma maior ou menor dose de hipocrisia, tudo bem. Mas perseguir o Mensageiro, queimá-lo nem que seja só em efígie na praça pública tem algum efeito prático? Faz desaparecer a peste? Não, não faz desaparecer a peste. Ao invés de se perseguir o Mensageiro porque é que não se exige aos Sábios e aos Políticos deste país que nos revelem a Verdade? Uns mandam-nos mudar de ares (emigrar), outros mandam-nos rezar e queimar hereges. Há uma solução para nos livrarmos da peste? Há várias soluções? Quais são? Se não as há, então é infelizmente verdade que estamos condenados a aguentar mais, e mais, e mais, sabe-se lá até quando.

Três meses depois, já neste mês de fevereiro, o banqueiro voltou a insistir que o país ainda aguenta mais Austeridade. Mais uma vez, lá caiu o Carmo e a Trindade! Nestes últimos três meses a situação melhorou, ou antes piorou? Claro que piorou. E as pessoas continuam a aguentar. Conheces, porventura, as mais recentes sondagens? Quantos Portugueses continuam a apostar no Governo? Uns 40%? Se alguém perguntasse a estes Portugueses se ainda aguentam, que responderiam eles? Ontem, amplamente publicitada pelas chamadas Redes Sociais, teve lugar, em várias cidades deste pobre país, uma manifestação de Indignados. Quantos Indignados deram a cara? Uma meia dúzia. E os que ficaram em casa? Ainda não estarão Indignados? Continuam a concordar com as políticas do Governo? Parece-me que sim, de contrário teriam incorporado as manifestações.

 

Confesso-te que tudo isto me preocupa muito seriamente. Enquanto os senhores que mandam na política, independentemente da Ideologia ou do Partido, não se convencerem que eles, enquanto Corporação, são moralmente responsáveis pelo destino de milhões de pessoas, e que não foram eleitos para passarem o mandato a papaguear sound bytes ou vomitar insultos recíprocos com o propósito único de fazerem manchete nos telejornais das 8, mas sim para honestamente, serenamente, com elevado sentido ético e profissional, se esforçarem por descortinar, propor, aprovar e pôr em pratica as mais adequadas soluções que visem melhorar a vida dos cidadãos que os elegeram, bem como das suas famílias e de seus descendentes, enquanto isso não acontecer estamos positivamente tramados. Afirmava Churchill que um político só se converte num estadista quando começa a pensar nas próximas gerações e não nas próximas eleições. 

O discurso vai longo, noto-te enfadado, mas responde-me, peço-te, analisando friamente os dados disponíveis, esquecendo por breves momentos a identidade do Mensageiro, e atendendo tão somente à Mensagem, até quando será humanamente suportável este sufoco? Não haverá por aí um qualquer discípulo esquecido do dr. Ricardo Jorge, com disponibilidade e talento para nos livrar de vez desta insuportável pandemia a que se convencionou chamar Austeridade?

- O. K. Chico. Mas tu, no seguimento de todas essas tuas análises, de todas essas tuas críticas, porque é que não experimentas produzir doutrina, apontar caminhos?

- Meu caro, eu não passo de um mero espetador, um espetador que se limita a observar e a comentar, que se esforça por ser imparcial, que utiliza a Razão e não o Coração. Não mais do que isso. Trabalhar, só trabalhei uma vez na vida, foi em Londres, numa loja do Piccadilly, a aviar doses de shish kebab.  Mas então tinha 25 anos e estava apaixonado.

No que diz respeito à matança de 1506 foi erguido no largo de S. Domingos, em abril de 2008, portanto mais de 500 anos depois, um monumento de homenagem às vítimas.

Daqui a uns 100 anos, ao cimo da escadaria que conduz ao edifício onde hoje funciona a Assembleia da República, o então Presidente da Autarquia, numa cerimónia singela mas prenhe de significado histórico, procederá à inauguração de um pequeno monumento que constará de um pedestal com mais ou menos 1 metro e meio de altura sobre o qual, num cenário em ruinas, duas estátuas representando um casal sem-abrigo partilham o que resta de um pão. Uma placa comemorativa assinalará a efeméride: ‘Em memória dos Portugueses de há 100 anos que, ingenuamente, confiaram nas palavras do Sr. Presidente do Conselho de Administração da Assembleia da República, Sr. Eng. Couto dos Santos, que afirmou a um jornal que os Portugueses deveriam ter confiança nos deputados que elegeram, pois estes eram responsáveis pelos seus atos. Os Portugueses, ingenuamente, confiaram’.

 

Sabes o que me apetecia fazer agora? Pois era ir até aos Jerónimos cumprir um ritual que já não cumpro há algum tempo, e que consiste em contemplar, deslumbrado, a extraordinária filigrana em pedra que é o Portal Sul, ao mesmo tempo que rogava ao Anjo de Portugal, que tudo vigia lá do alto, que nos conceda o milagre de reajustar uns tantos fusíveis nas mentes dos nossos políticos por forma a que estes passem a conjugar o verbo governar como verbo transitivo que é, eu governo as finanças, tu governas a economia, ele governa a autarquia, em vez de o continuarem a conjugar como verbo reflexivo que de todo não é, eu governo-me, tu governas-te, ele governa-se. Depois iria até aos Claustros, que percorreria com muito vagar, saboreando religiosamente o exoterismo de cada um dos medalhões. Mas não. Uma das paredes da sala de estar da nossa casa aqui de Lisboa apresenta uma manchas de humidade e a Rita de Cássia decidiu aproveitar as pequenas obras que temos que mandar fazer para efetuar algumas modificações na decoração, tais como pintar a sala de uma outra cor, mudar os cortinados, reformar uma parte da mobília. Por isso marcou uma reunião hoje à tarde, lá em casa, às 5, com um sobrinho, casado com uma sobrinha, e que é arquiteto de interiores. Pessoa escreveu na Mensagem: ‘Cumpriu-se o Mar… falta cumprir Portugal’. Eu diria: ‘Cumpriu-se a vontade da Rita de Cássia… a minha ficou em águas de bacalhau’. Que queres? Mulheres! 

  

Com um forte abraço do

               Zé

                                                                                   Vila Viçosa,11 de fevereiro de 2013.

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publicado às 17:21


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José Cardoso Pires escreveu, em adenda de Outubro de 1979 ao seu «Dinossauro Excelentíssimo»: "Mas há desmemória e mentira a larvar por entre nós e forças interessadas em desdizer a terrível experiência do passado, transformando-a numa calúnia ou em algo já obscuro e improvável. É por isso e só por isso que retomei o Dinossauro Excelentíssimo e o registo como uma descrição incómoda de qualquer coisa que oxalá se nos vá tornando cada vez mais fabular e delirante." Desafortunadamente, a premunição e os receios de José Cardoso Pires confirmam-se a cada dia que passa. Tendo como génese os valores do socialismo democrático e da social democracia europeia, este Blog tem como objectivo, sem pretensão de ser exaustivo, alertar, com o desejável rigor ético, para teorias e práticas que visem conduzir ao indesejável retrocesso civilizacional da sociedade portuguesa.

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