Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]


Eu vou ser como a toupeira                                  

 

Zeca Afonso

 

 

Eu vou ser como a toupeira

Que esburaca  

Penitência, diz a hidra 

Quando há seca 

Eu vou ser como a gibóia 

Que atormenta  

Não há luz que não se veja 

Da charneca 

E não me digas agora

Estás à espera  

Penitência diz a hidra

Quando há seca 

E se te enfias na toca 

És como ela 

Quero-me à minha vontade

Não na tua 

Ó hidra, diz-me a verdade 

Nua e crua

Mais vale dar numa sarjeta  

Que na mão 

De quem nos inveja a vida 

E tira o pão

 

     

  in Eu vou ser como a toupeira (1972)

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 00:00

O DIA EM QUE OS CAPITÃES FIZERAM PORTUGAL FELIZ 

 

Foi uma noite larga como um rio,

tão larga como o coração de um povo

ou o voo de um albatroz sobre o sono das ilhas.

 

Foi uma noite a desaguar numa foz de pétalas

onde todas as vozes se juntaram, altivo coro,

para dizer que nunca é tarde para a felicidade

sentar à nossa mesa a herança de luz

que a torna tão desejada, doce e rara.

 

Até o silêncio se fardou de capitão

para abrir a porta de armas a um cântico

vindo do ventre fértil desta pátria

com uma arca de palavras nascidas da lavra

do nosso amor a tudo o que nasce valente e livre.

 

Que idade tínhamos nessa madrugada

que tudo prometia ser, deixando o medo refém

de uma vida inteira de servidão e vénia ?

 

Tínhamos a idade dos filhos que já tínhamos

e dos que vinham a caminho, sem mácula,

para que nunca mais se fechassem as portas

que a coragem abrira à bênção do vento e do riso.

 

Que idade tínhamos nós nessa noite,

mãe de todas as noites que as feridas da guerra e do exílio

cobriram com os panos ásperos do sal das lágrimas ?

 

Tínhamos a idade de ser irmãos daqueles a quem,

com a bravura das ondas, chamámos camaradas,

na fraternidade de sangue que aduba os canteiros da paz.

 

Que idade tínhamos nós nessas horas tecidas

com o fio da incerteza que sufoca, que engrandece ?

 

Passaram quarenta anos, tantos anos, por nós,

pelos retratos, pela gaveta funda das lembranças,

pelos olhos das mulheres e dos filhos, dos amigos

que o tempo teimou em levar, traiçoeiro e sem aviso,

só para nos castigar com o fel da imerecida ausência

como se houvesse um preço a pagar

por termos conseguido tornar, em Abril, Portugal feliz.

 

Passaram tantos anos pelas páginas do livro

que, por amor, escrevemos, enamorados

de uma ideia, de um sonho, de uma maré indomável,

porque éramos jovens e queríamos que a juventude

não morresse no mato das ilusões desfeitas.

 

Passaram tantos anos sobre as cicatrizes

do chicote, da tortura, da ameaça, da injúria

e nós permanecemos de pé, na reserva da tropa

mas não na reserva deste pacto selado com o futuro.

 

E mesmo cansados, nunca fomos tão jovens como hoje

para proclamar, guerreiros da colheita adiada,

que nos podem tirar quase tudo, menos o direito

de, livres, dizermos que Portugal não se rende,

desde Alcáçovas ao Largo do Carmo,

desde o Terreiro do Paço às celas abertas de Caxias.

 

E esses foram, que ninguém o esqueça,

os dias únicos da glória de Portugal,

notícia que nos devolveu o fulgor e a magia

após tantos anos de dorso vergado

nessa feira cabisbaixa de que falava o O'Neill

e que reclamava o Portugal futuro do poema de Ruy Belo.

 

Já passaram tantos anos e tão poucos,

já fomos tantos e tão poucos, mas cada vez

seremos mais, entrincheirados no quartel desta memória

que renasce connosco sempre que dela fazemos estandarte

desfraldado ao vento daquilo que ainda nos falta viver.

 

E que ninguém se atreva a dizer-nos

que a História, afinal, ficou por cumprir.

 

Militares e civis, fomos nós que a escrevemos

com as letras de seiva, sangue e espuma

com que se escreve tudo aquilo que conta,

tudo aquilo que fica, tudo aquilo que resiste.

 

Já passaram tantos anos, mas foi ainda ontem,

no manso clarear da madrugada, que mudámos

o destino de uma terra e de um povo,

como se disséssemos: “Todo o poder que queremos

é a liberdade e a alegria de uma pátria livre. Nada mais”.

 

No livro desta história está um capítulo em falta

e há-de ser escrito por quem não esquece nem desiste.

E que ninguém apague a luz enquanto houver lá fora

gente à espera dos muitos nomes, vozes e rostos

que este nosso Abril ainda um dia há-de ter.

 

José Jorge Letria

(do livro “Zeca Afonso e Outros Poemas para Lembrar Abril”, Abril de 2014)

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 23:50


Mais sobre mim

foto do autor


calendário

Janeiro 2016

D S T Q Q S S
12
3456789
10111213141516
17181920212223
24252627282930
31

Declaração de Princípios

José Cardoso Pires escreveu, em adenda de Outubro de 1979 ao seu «Dinossauro Excelentíssimo»: "Mas há desmemória e mentira a larvar por entre nós e forças interessadas em desdizer a terrível experiência do passado, transformando-a numa calúnia ou em algo já obscuro e improvável. É por isso e só por isso que retomei o Dinossauro Excelentíssimo e o registo como uma descrição incómoda de qualquer coisa que oxalá se nos vá tornando cada vez mais fabular e delirante." Desafortunadamente, a premunição e os receios de José Cardoso Pires confirmam-se a cada dia que passa. Tendo como génese os valores do socialismo democrático e da social democracia europeia, este Blog tem como objectivo, sem pretensão de ser exaustivo, alertar, com o desejável rigor ético, para teorias e práticas que visem conduzir ao indesejável retrocesso civilizacional da sociedade portuguesa.

Os Meus Livros

2012-05-09 A Edição em Portugal (1970-2010) A Edição em Portugal (1970-2010): Percursos e Perspectivas (APEL - Lisboa, 2012). À Janela dos Livros capa À Janela do Livros: Memória de 30 Anos de Círculo de Leitores (Círculo de Leitores/Temas e Debates - Lisboa, 2011) Risk Management capa do livro Risk Management: Gestão, Relato e Auditoria dos Riscos do Negócio (Áreas Editora - Lisboa, 2004)

Não ao Acordo Ortográfico

APRe! - logotipo