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Rã em panela de água morna
Amena cavaqueira, com vista para as núvens negras que o sol de Inverno teima em tapar
Como se sabe do texto anterior, o meu amigo Zé veio a Lisboa. A oportunidade surgiu e combinámos encontrar-nos. Sim, porque pese embora alguns leitores do Blog já terem mostrado as suas dúvidas, o Zé é de "carne e osso", somos amigos há mais de cinquenta anos e não podíamos deixar passar esta ocasião para irmos almoçar com as nossas caras-metades e pormos a conversa em dia. Não porque não nos víssemos desde há muito, mas porque nas últimas vezes tínhamos estado rodeados de muitos e bons amigos e desta vez dava para uma conversa mais prolongada e até para entrar em mais pormenores sobre o seu amigo Chico da Terrugem. Quatro "horitas" foi quanto durou o almoço. Ou seja, foi um ápice, nem demos pelo tempo passar e, se não fossem as nossas companheiras começarem a "tocar as campaínhas", não sei quando é que a conversa pararia.
Falámos sobre tudo e mais alguma coisa. Os filhos, os netos, os amigos, as viagens no país e lá por fora, os livros, o futebol, as vidas profissionais que percorremos. Enfim, passámos a pente fino os ditos "bons velhos tempos", que nem sempre foram assim tão bons, e, aí, começámos a derivar para os tempos mais recentes e os "maus novos tempos" que pairam sobre a cabeça dos portugueses. E também sobre algumas das muitas ideias que moram na cabeça do Chico da Terrugem e que o Zé irá, a seu tempo e em função do que for acontecendo, actualizar com aquele caldo de cultura a que já nos habituou.
E que interesse tem isso para colocar em texto no Tu(r)bo d'Escape? Vamos a isso, vou dar as minhas razões procurando não ser redundante no que já consta em escrios anteriores; até porque temas novos, como fazer mais uma remodelação governamental exclusivamente ao nível dos "ajudantes dos ministros" (a terminologia tem o dono que se conhece), nomear para secretário de Estado um ex-administrador da SLN/BPN, ou pôr os deputados da maioria a fazer recomendações sobre a programação da RTP e o Relvas a coordenar a reestrututação da empresa que o própria queria "privatizar", não passam de pequenas manobras de diversão para "entreter o pagode" enquanto se prepara o assalto aos 4.000 milhões acordados com os "troikanos" e se faz crer que o Gaspar já pôs "os mercados" do nosso lado.
O que há de interessante na "amena cavaqueira", começa por ser o ter existido, o falar-se e procurar-se razões para o que se passa no país, abertamente, sem tabús mesmo nas questões em que o pensamento é consabidamente diferente, o que nos tempos que correm é tantas vezes evitado. É o ter existido indo lá atrás no tempo, procurando encontrar os porquês, lembrando as más experiências vividas na era "da outra senhora", recordando, até, os múltiplos casos concretos de corrupção quando não havia políticos porque a política era proibida. É o ter existido para tomar bem consciência do muito que Portugal e os portugueses fizeram ao longo destes anos de uma ainda relativamente jovem democracia, mas também do que nunca se deveria ter feito e daquilo que foi preciso arriscar para conseguir uma evolução indesmentivelmente real e que, inevitavelmente, arrastou consigo algumas outras coisas que correram menos bem ou mesmo mal. É o ter existido para debater o presente, perscrutar o futuro, o nosso apesar do horizonte já não ser largo, e o dos nossos vindouros; com respeito pelo indispensável sentido biunívoco da solidariedade intergeracional.
O mais importante, que não o mais interessante, é a conclusão, a moral da história. A convicção, resultado da observação atenta do que se passa ao nosso redor, num âmbito restrito ou num domínio alargado, de que a sociedade, como um todo, não se indigna com as atrocidades a que está sujeita, assobia para o lado quando não lhe toca directamente, deixa-se embalar na cínica hipocrisia de pôr umas classes contra as outras ou uns grupos etários contra os outros, não quer aprofundar conhecimento sobre a teoria e a prática política que a está a atabafar, que a vai empobrecer até ao limite dos limites.
Amolecidos na nossa zona de conforto, ou inertes por um desconforto entorpecedor, estamos capturados como a rã que se deixa aquietar na água morna da panela que aquece em lume brando. Se não saltarmos desta armadilha, rapidamente e num esforço de cooperação mútua, não tardará muito que sejamos irremediavelmente aniquilados pela entrada em fervor da água que nos "garantem" estar agora a chegar à temperatura ideal.
Rui Beja